Cheguei a esta terra de Saint-Malo ao fim do dia, a essa
hora mágica que nos deslumbra e nos humaniza, em que o sol radiante, por se
esconder tão baixo entre as nuvens, se torna mais assombroso e divino. Nesse
momento, Saint-Malo deixou de ser um ponto no mapa, um cenário de filme de
Rohmer, uma abstrata comuna na Côte d'Émeraude. Passou a ser real; de início o
ar marinho e a visão que se amplia, depois o chão, a areia da praia enorme,
surpreendentemente larga e comprida, com um extremo recortado em perfil escuro,
a fortaleza e a urbe antiga ainda aquecidas pelo sol que agora declina, e o
outro lá tão longe, no extremo da grande curva.
Quis pisar aquela praia plana, percorrê-la à fímbria da maré
baixa, andar sobre a larga faixa de areia ainda molhada, do mar que ali esteve
ainda há pouco. À medida que caminho pelo areal, torno-me menos estrangeiro. Já
sou quase dali, ou poderia ser, as gaivotas não me são estranhas nem os raios brancos
que o sol despede em torno, aquelas nuvens que quase preenchem o céu desta
Terra que é tão diversa e una, ou mesmo a silhueta da vetusta fortaleza mar
adentro. Olho com simpatia para os tardios veraneantes que, perto ou longe, por
ali deambulam. Meia hora mais tarde, mais próximo da cidade, sou apenas estrangeiro
por circunstância, pertenço àquele sítio, quase como as pessoas dispersas que
cruzo, que seguem adiante ou que se detêm à beira-mar, eretas sobre o seu
reflexo, apontando o mar, fitando-o em silêncio ou em murmurante cumplicidade, as
crianças que brincam e que ainda nada sabem sobre o futuro e pouco sabem sobre
o passado.
Quando dou meia volta, para regressar a tempo do jantar, sinto
uma profunda felicidade. Os pés pisam o chão que me é cada vez mais familiar,
sinto intimidade com o lugar e a história –aprenderei depois que Saint-Malo foi
uma cidade de corsários, ouvirei falar do intrépido Robert Surcouf e verei a
sua estátua – e sinto, sobretudo, aquela refrescante disponibilidade de quem
não tem que ir trabalhar no dia seguinte, nem no outro, nem no outro.
[Fotografias (c) 2013 Luís Diferr]
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