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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Destrangeira – Paris / Balcãs


Liubliana

Em Liubliana ele disse-lhe que a amava. Dois meses antes, em Paris, classificou-a de burguesa estúpida. Em Dubrovnik levou-a a passear de teleférico para lhe dizer que ela era genial e que se sentia nas nuvens,tão apaixonado e contente que poderia voar.

– Então porque não voas? – replicou ela.

Ele disse-lhe que poderia fazê-lo, que a amava e, mais tarde, que ela era uma cabra, como aquelas que por ali andavam a pastar. Esbugalhando os olhos, assumindo um ar demente, comparou-se a um dragão viril, como aqueles na ponte de Liubliana, como o velho Vlad o empalador, Drácula de cognome. Ela, incomodada com o seu hálito mais do que com as suas façanhas, repetiu a pergunta, acrescentando:

– Então porque não voas? E me deixas em paz?

Dubrovnik

– Não percebes que tudo isso são metáforas, minha jóia?! Se eu saísse a voar – disse ele –, rebentava os cornos contra o chão, ali ao pé daquelas cabras! É isso que tu queres?

Dias depois, junto à muralha de Kotor, no Montenegro, jurou que, por ela, viveria ali como um sem-abrigo, ou em Tombuctu como um cristão-novo, ou mesmo no Nepal como um hindu convertido ao budismo. Achava-se imbuído de uma infinita sensação de paz.

– Com tanta elevação, poderias voar até lá acima, até ao topo daquelas montanhas – sugeriu ela e apontou a cadeia montanhosa que se elevava mesmo às costas da cidade. E logo acrescentou: – Claro que isto é apenas uma metáfora!...

Kotor

Em nenhuma das cidades que visitara ela se sentira uma estrangeira. De um modo que lhe parecia natural, em todas essas urbes, maiores e menores e com línguas mais ou menos agrestes, ela se destrangeirara rapidamente. Em contrapartida, aquele homem que já fora belo, português como ela, era cada vez mais um estranho, um palerma convencido com trejeitos de bipolar, que passara das pilhérias juvenis aos insultos de um bêbado e que se tornava a cada semana, a cada viagem, a cada refeição, mais insuportável.

E assim, um dia, novamente em Paris, sem mais, ela abriu asas e voou.


[Fotografias (c) Luís Diferr]

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O DESTRANGEIRO – Saint-Malo


Cheguei a esta terra de Saint-Malo ao fim do dia, a essa hora mágica que nos deslumbra e nos humaniza, em que o sol radiante, por se esconder tão baixo entre as nuvens, se torna mais assombroso e divino. Nesse momento, Saint-Malo deixou de ser um ponto no mapa, um cenário de filme de Rohmer, uma abstrata comuna na Côte d'Émeraude. Passou a ser real; de início o ar marinho e a visão que se amplia, depois o chão, a areia da praia enorme, surpreendentemente larga e comprida, com um extremo recortado em perfil escuro, a fortaleza e a urbe antiga ainda aquecidas pelo sol que agora declina, e o outro lá tão longe, no extremo da grande curva.

Quis pisar aquela praia plana, percorrê-la à fímbria da maré baixa, andar sobre a larga faixa de areia ainda molhada, do mar que ali esteve ainda há pouco. À medida que caminho pelo areal, torno-me menos estrangeiro. Já sou quase dali, ou poderia ser, as gaivotas não me são estranhas nem os raios brancos que o sol despede em torno, aquelas nuvens que quase preenchem o céu desta Terra que é tão diversa e una, ou mesmo a silhueta da vetusta fortaleza mar adentro. Olho com simpatia para os tardios veraneantes que, perto ou longe, por ali deambulam. Meia hora mais tarde, mais próximo da cidade, sou apenas estrangeiro por circunstância, pertenço àquele sítio, quase como as pessoas dispersas que cruzo, que seguem adiante ou que se detêm à beira-mar, eretas sobre o seu reflexo, apontando o mar, fitando-o em silêncio ou em murmurante cumplicidade, as crianças que brincam e que ainda nada sabem sobre o futuro e pouco sabem sobre o passado.

Quando dou meia volta, para regressar a tempo do jantar, sinto uma profunda felicidade. Os pés pisam o chão que me é cada vez mais familiar, sinto intimidade com o lugar e a história –aprenderei depois que Saint-Malo foi uma cidade de corsários, ouvirei falar do intrépido Robert Surcouf e verei a sua estátua – e sinto, sobretudo, aquela refrescante disponibilidade de quem não tem que ir trabalhar no dia seguinte, nem no outro, nem no outro.

[Fotografias (c) 2013 Luís Diferr]