BANDA DESENHADA, HISTÓRIAS E ILUSTRAÇÃO / BANDE DESSINÉE, HISTOIRES ET ILLUSTRATION / COMICS, STORIES AND ILLUSTRATIONS

sábado, 30 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (30)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


Estrelita Rúbia!... Tenho que ir vistoriar os preparativos para a expedição!... – diz Javardo, arquejante, de dentro da sua choupana.
– Que expedição, meu Fogoso Arminho? – responde ela, arfando. – Só mais um pouco, vá!...
– Estrelita... a expedição!... Larga-me ou eu mordo-te!...
Morde-me, meu selvagem! MORDE-ME! MEU PÂNDEGO! MEU FALCÍPEDE!... Assim... AAAHH!…
Do lado de fora, no pátio, todos se divertem a ouvir aquilo. Os homens amontoam coisas e limpam cavalos para a expedição.
No torreão, um dos bruxos põe a cabeça de fora para olhar para o pátio, perguntando a si próprio:
– Mas que gritaria é aquela?!
– O que é que se passa lá em baixo? – pergunta uma voz do lado de dentro. – Quem é que estão a morder?
– Não sei – responde o mago à janela, por onde saem fumos –, mas toda a gente parece muito alegre. E já não é a primeira vez!...
Dito isto, volta para dentro, acrescentando:
– Ritos bárbaros, colega! Ritos bárbaros!...
No piso de baixo, Carcavel, no leito, chupa sofregamente um mamilo da sua jovem amante. Comenta ela:
– Tendes um lugar-tenente mesmo estúpido e bruto, meu Príncipe.
Ele não responde, entretido na sua tarefa. Ela cerra os olhos, de prazer, e murmura:
– É bom!... – Mas, passado algum tempo, face ao afã de Carcavel, recomenda: – Em todo o caso… convém poupar o meu seio, ardente Príncipe.
– Para quem, para o Javardo ou qualquer campónio piolhoso?! – reage ele, duramente.
– Para o vosso filho. – diz ela e Carcavel de imediato se endireita e fita-a nos olhos. – Eu estou grávida, meu Senhor.
Ele levanta-se, desamarrota a sua camisa de dormir e pergunta-lhe, enquanto ela puxa suavemente os lençóis para se cobrir:
– Tens a certeza, Dária?
– Tenho. E estou feliz.
Carcavel faz um sorriso enviesado, dirige-se à janela, observa o horizonte e diz, como se refletisse:
– Bom… Vou ter um pequeno bastardo!...
[CONTINUA]

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (29)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr

– Foram tiros certeiros, Samara – diz o estalajadeiro com um brilho de admiração no olhar. – Onde foi que aprendeste a atirar assim?
– Ora! Que mais há para uma rapariga fazer nesta terra?
– Tomar banho! Tomar banho! Tomar banho! – repete o pateta, rapidamente e agitando a cabeça como se fosse um contador.
– Extraordinário! Soberbo! Magnífica lição! – exclama, por sua vez, Lúcio, que chega ao pé deles, todo entusiasmado. – Os golpes hoje aqui vibrados ficarão na memória dos deuses como dos mais viris da história deste rincão!!
– Achas que sim?! – responde Asdrúbal Moutinho, arqueando as sobrancelhas com ar de dúvida. – O Príncipe vai revidar, Lúcio. Isso é que me preocupa.
– Mais uma razão para eu me ir embora! – diz Kli. – Não vos quero causar mais problemas. Amanhã de manhã partirei para Valmenor.
Partiremos! – corrige a rapariga, franzindo as sobrancelhas.
“A decisão dos Heróis era irrevogável” – virá a escrever Lúcio Simplex.

No hemiciclo defronte do templo, Fulvo, ainda atónito, balbucia:
– Incrível!... A filha do Apolinário acertou uma seta no rabo de um deles! E arrancou uma faca da mão de outro!!
Passado um bocado, alguém comenta:
Filha!...  Como se ela pudesse ser filha de cimbalinos!
– Se calhar, pode! Se calhar, é por isso que é maluca e se põe a atirar setas!...
– Sim! Aquilo não é natural!
– Perdão! Há em todo este assunto algo que... – e a conversa prossegue, reincidente.

– Eis ali o nosso amigo Fulvo! – diz Kli, olhando para o hemiciclo. – Parece que já acabou a sua cerimónia religiosa!... É altura de ir falar com ele!
Como se adivinhasse as intenções de Kli, o sacerdote escapa-se para dentro do templo, trancando a porta. Lúcio  ri-se:
Ha, Ha, Ha! Não tirarás nada daquele!...
– A verdade é que nem valeria a pena!... – acrescenta o estalajadeiro. – Bom, vamos almoçar!
– E o que se faz destes dois falcípedes? – pergunta o palerma, referindo-se ao gordo e ao companheiro que batera com a cabeça na árvore, ambos inanimados.
– Esses paspalhões? Que fiquem aí!
Falcípedes?! – pergunta Kli, admirado.
– Não ligues, o Apuleio diz coisas sem sentido!... – replica Samara.
– Falcípedes – recomeça o palerma a recitar –, exâmines, autistas, esquizotímicos, pincéis, volfrâmio ou tungsténio... tudo isto são palavras de significado impecável!
– Ele vai escrever outra vez?
– Nunca se sabe!... – pondera Lúcio. – Mas não, desta vez Apuleio não parece disposto a escrever.
De facto, ele corre para a margem do rio.
– Tomar banho! – proclama, já afastado. E atira-se à água!

Kli e Lúcio caminham em direção à estalagem. Samara e Asdrúbal vão já uns dez passos adiante.
– Porque é que ele, há bocado, se pôs a falar em tomar banho, referindo-se a Samara? – pergunta o cimbalino, apontando-a com um gesto de cabeça.
Lúcio, sem interromper o passo, olha para o palerma, que faz grande espavento dentro de água.
– Porque um dia viu a Samara nua, a tomar banho no rio. Era muito cedo e ela cantava algo ao Sol, que nascia atrás daquelas colinas!... – Aponta para os montes onde se ergue a fortaleza de Carcavel. – O Apuleio reproduziu-me o canto mais tarde, mas eu já não me lembro. Em qualquer caso, ele parece ter ficado muito impressionado com o episódio!...
– Eu também já vi a Samara nua a tomar banho no rio! – diz o puto Aderbal que, como por milagre, surgiu repentinamente ao lado deles. – Não era grande coisa!... – completa ele, com adolescente sabedoria.
[CONTINUA]

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (28)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


Com aquele alvoroço, a porta do templo entreabre-se e a cabeça de Fulvo surge timidamente.
– O que se passa? – perguntam lá de dentro.
Ouve-se o palerma gritar: – Toma! Idiota! Sabujo! Ornitorrinco!
– O címbalo e o Asdrúbal estão em maus lençóis – diz o sacerdote, com um esgar cínico na face.

O adversário de Kli tem-no à sua mercê. Exulta já e prepara-se para dar o golpe de misericórdia quando... uma seta se lhe espeta no rabo! O homem grita. E Kli avista, a alguma distância, Samara equipada com o seu arco. Com ar orgulhoso, acaba de disparar.
No templo, Fulvo também viu aquilo e abre os olhos de espanto.
– A filha do Apolinário acertou uma flecha no rabo de um deles!! – exclama.
Uma flecha?! – responde Astolfo, cuja cabeça aparece também à porta. – No rabo de quem?!
A filha do Apolinário?! – admira-se alguém, lá dentro.
“Samara, jovem arqueira, interveio a tempo, trespassando o glúteo do inimigo com uma pontaria assombrosa”.
Kli, sem perder tempo, dá uma tremenda paulada no gordo, que desfalece. Mas outro deles, o que levara a pedrada de Aderbal, já se recompôs o suficiente para se atirar ao cimbalino pelas costas, brandindo uma faca.
Uma segunda seta corta o ar, “e a arqueira arrancou-lhe a faca da mão!...”
– Como Guilherme Tell com a maçã – diz o palerma, com um sorriso de orelha a orelha.
O estalajadeiro, num vigoroso golpe, aligeira o adversário da sua espada. Foi a conta para este, já alarmado com o que se passava à sua volta. Cai de joelhos, suplicando a Asdrúbal:
– Piedade, poderoso senhor!
– Põe-te a andar, miserável! – riposta Asdrúbal. O homem vira-se logo, para fugir, e o estalajadeiro acerta-lhe um pontapé no traseiro, dizendo: – Ou antes, a correr!...
E ele sai a correr, na peugada do da faca e do da seta no rabo, que já atravessa a ponte.
Viva! – grita, eufórico, o palerma. – Servos de merda! Apóstolos!
Tomado de pânico, ao ver os três homens aproximarem-se, Fulvo fecha a porta do templo.
– Fulvo, assim não vemos nada! – reclama alguém lá de dentro.
– Não há nada para ver!

Triplos cabrões! Vão pastar na pedra! – invectiva o palerma, agitando o punho em direcção aos servos do Príncipe que fogem para as encostas.
– Ontem foi um... E hoje são três! – comenta um pastor, para o colega, ao vê-los passar.
– Amanhã serão talvez cinco, ou nove!... – responde o outro, apoiando o queixo sobre as mãos e estas sobre o topo do bordão. É sabido que foi com a contagem de ovelhas que se desenvolveu o cálculo e a noção de número.

Quando os fugitivos já vão longe, a porta do templo reabre-se e Fulvo espreita cá para fora.
– Então? – pergunta alguém lá de dentro.
Vendo que não há perigo, saem todos para o ar livre e põem-se a observar os três esbirros do Príncipe que são agora perseguidos pelo cão de um pastor.
– Canalhas! Ponham-se a léguas[1]! – grita Astolfo.
– Morde-os, Valente! – incita Lila, embora o cão, muito longe, não a possa ouvir.
Olham então para os lados da grande árvore, onde Kli, Samara e Asdrúbal estão agora reunidos. Lúcio Simplex, Amílcar e Elissa, vindo apressadamente da estalagem, dirigem-se ao trio.
[CONTINUA]



[1] Légua: unidade de medida que equivale a 5 km; nessa época ainda não era conhecida.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (27)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr

O cimbalino, usando do maior comprimento do seu cajado, acerta uma pancada no queixo de um deles e depois, com uma extraordinária agilidade, salta por cima dos outros, um dos quais é imediatamente esmurrado por Asdrúbal Moutinho. Kli aterra atrás do gordo, que sua e arfa, como da primeira vez: “Hu! Hu!”. Não se livra o homem de uma tacada no crânio, antes mesmo de ter tempo para se virar; “HU!”
– Ora, cá estamos nós outra vez! – diz-lhe Kli, enquanto ele vê estrelas.
Mas já um companheiro investe sobre o cimbalino, erguendo a espada e rugindo!
POC!  Antes que possa desferir o golpe, é atingido por uma pedrada na cabeça. É o puto Aderbal que entra na liça!
– Aderbal, que estás aqui a fazer? – lança-lhe o pai.
O miúdo gira novamente a sua funda.
– A mãe mandou perguntar se contas com muita gente para o almoço – diz ele, acertando na pança do gordo.
– Não – responde Asdrúbal, batendo com a cabeça de um servo na árvore.  – O habitual. A menos que estes amigos pretendam ficar!...
Três dos “amigos” estão por terra, um devido à pedrada de Aderbal e o outro por ter batido com a cabeça no tronco. A este último o estalajadeiro pediu a espada emprestada. Quanto ao gordo, aturdido, contorce-se com dores.
Mas eis que um quarto (anteriormente esmurrado pelo estalajadeiro) se atira a este, enquanto ele recomenda ao filho: – Vá, põe-te a andar!
A distração de Asdrúbal vale-lhe um golpe no braço esquerdo!
Kli, por sua vez, enfrenta o adversário a quem dera uma paulada no queixo. O homem é forte e destemido e ataca-o com a espada em riste.

Do alpendre da estalagem, ao lado de Elissa e de Amílcar, excitados, Lúcio Simplex observa a luta. Virá ele a escrever mais tarde:
“A liça foi terrível, com dois Heróis e um fundibulário juvenil a desancarem a turba. Os golpes vibrados nesse dia ficarão na memória dos deuses como dos mais viris da história deste rincão.”
Aderbal passa célere por Lúcio e pelos irmãos e grita através da porta aberta:
– Mãe! O pai diz que não há novidade!
 A mãe, lá de dentro, responde:
– Ótimo. Espero que ele não se atrase!...
Quando o rapaz se prepara para descer as escadas e retornar à liça, depara com uma rapariga alta e loura, que na rua acaba de chegar a correr. É Ariska, uma das filhas do Eslavo. Ela detém-se ao vê-lo, mexe nervosamente uma mão na outra e pergunta:
– O que se passa ali, Aderbal?
– Não vês, Ariska?! – responde ele, contrariado. – Estão à porrada!
– Mas tu não vais lá, pois não?
– Não sejas parva! Achas que eu ia perder a festa?
Porém, para seu maior contratempo, Mirthô surge à porta, avista a luta e repreende-o:
– Onde vais tu, meu espertinho? Não penses ir divertir-te com o teu pai, ora essa! Tens que me ajudar a carregar os legumes da cave e a preparar o almoço. A vida não é só brincadeira.
Resmungando, Aderbal volta para dentro. A mãe acompanha-o, não sem antes cumprimentar a jovem adolescente:
– Olá, Ariska! – E, depois de um momento a observá-la, completa: – Não devias ligar a este palerma! Queres cá almoçar?
– Não. Acho que não.
– Então, cumprimentos ao teu pai.
E, com isto, deixa-a ali especada. Sob o olhar de Lúcio, ela, depois de olhar para a refrega, sai a correr em direção à sua casa, no outro extremo da aldeia.
– Adeus, Ariska! – gritam-lhe Amílcar e Elissa.

Debaixo da árvore, Asdrúbal e Kli defrontam os seus adversários. O oponente de Kli desvia-se e, com um violento golpe de espada, corta-lhe um bocado do cajado.
– Malandro! O meu cajado de sorveira brava! – brada o cimbalino. Apoia-se no pau para lhe dar com os pés, mas o gordo, no chão, corta-lhe mais um bocado do mesmo... e ele cai!
O palerma dá pulos de alegria: – Viva! Palermas! Capachos!
[CONTINUA]

terça-feira, 26 de junho de 2012

Poemas com sabor a afectos

Livro de Isabel R. Monteiroedição de Edições Esgotadas
Ilustração de capa (c) 2012 Luís Diferr
[Photoshop sobre desenho a lápis de grafite em papel de aguarela]

Decorreu hoje o lançamento do livro de Isabel R. Monteiro, “Poemas com Sabor a Sol, a Sal e A-mar”, para o qual tive o prazer de produzir a ilustração da capa e de que transcrevo o seguinte poema, belíssimo como tantos outros:

Porquê essa alegria
Que nasce das palavras
E que arremeto ao tempo
E a quem saboreia o riso?
Porquê vazá-la de mim fora
Quase sem pensar… Porquê?
Se a minha alma tanto ri ou chora
Que dê ao menos esse apetite
Que dê, aos olhos lassos
que andam sempre tristes
O que só a alma
Bem conhece e sabe

E acorda em mim
nem eu sei porquê…

(c)2012 Isabel R. Monteiro


Ver notícia AQUI.

Os Druidas de Valmenor (26)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


Kli vem a atravessar a ponte, dialogando com o palerma:
– Que mais sabes sobre os Druidas, Apuleio?
– Sei que são parvos! – responde ele. – São parvos, parvos, parvos!...
Nesse instante, o cimbalino vê Samara e o estalajadeiro a correr na sua direção.
Kli! FOGE! – grita ela.
Num instante se reencontram. O palerma parece aborrecido com isso, resmungando e olhando para o outro lado: – Parva!
– Vêm aí cinco galfarros do Carcavel para te tratar da saúde – diz Asdrúbal ao cimbalino.
– Ah, vai haver pancadaria! – rejubila agora Apuleio. – Bom, bom, bom!
– Ora, ora!... Por isso aquela gente se refugiou no templo!... – diz Kli, olhando para lá.
– O que vais fazer? – pergunta Asdrúbal. E aponta o arvoredo, a uns cem metros da aldeia. – Se fugires, talvez consigas esconder-te na floresta.
Fugir?! Eu?! – indigna-se Kli. – De cinco boçais?!
– Viva! – exclama Samara e atira-se ao pescoço de Kli, dando-lhe um beijo. – Que valente!
– Vimos cinco, mas pode haver mais – avisa Moutinho.
– Posso contar com a tua ajuda? – pergunta-lhe Kli.
O estalajadeiro medita por um instante.
– Podes contar comigo! Podes contar comigo! – grita o palerma, pondo-se aos pulos, excitado.

Quando os esbirros do Príncipe chegam ao local, encontram apenas Kli, encostado à grande árvore, de frente para eles, e Apuleio.
– Ora, ora!... Que robusta companhia!... – ironiza o cimbalino.
– Aí estás tu, címbalo! Vimos buscar-te, a mando do nosso mestre – atira-lhe logo um dos homens, ferozmente.
– Mas antes apetece-nos dar-te uma surra.

– Nesse caso, terão que se haver também comigo – diz Asdrúbal Moutinho, saindo de trás da árvore.
Nesse momento, Samara entra apressadamente pelo portão do jardim de Apolinário, proveniente de um caminho à beira-rio.
E, junto à grande árvore, uma hesitação de temor toma conta da tropa.
– Não te metas nisto, cartaginês! – rosna um deles. – O Príncipe não iria gostar!
– De quem o nosso Príncipe gosta é da garina!... – cospe outro, com volúpia nos olhos. – Onde é que ela está, hã?
– Onde vocês não lhe possam pôr as patas em cima, sabujos – replica friamente Kli.
– Samara está nua, Samara está nua! – cantarola o palerma, pondo-se a dançar.
– Cala-te, Apuleio! – ralha Moutinho. 
Sabujos?! – urra um dos homens, inconformado. – Pela má sorte, vamos permitir que este címbalo de merda nos chame sabujos?
– Claro que não! – gritam eles. – Mata! Esfola!
– Mas o que é um sabujo, afinal? – pergunta o gordo, perplexo.
Cão de montaria! – esclarece o palerma. – Utiliza-se figurativamente no sentido de um indivíduo servil... bajulador... adulador... capacho...
Vês?! – urra o homem, arreganhando os dentes. – É um insulto! Ele insultou-nos!
E com raiva na alma, puxando das espadas, todos os cinco se atiram a Kli e ao estalajadeiro.
[CONTINUA]

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (25)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


Quase ao mesmo tempo, Kli e Samara saem de casa dela, pela porta da loja, a única aliás. Admiram-se ao avistar os aldeões a correr pela ponte.
– O que deu àquela gente? – pergunta Samara.
– Sei lá! – responde Kli. Avançam os dois até à grande árvore junto à ponte, de onde avistam os outros entrar de roldão no templo. – Algum surto de fé repentina!...
Ela ri-se; depois, virando costas, diz:
– Podes averiguar, já que vais falar com o Fulvo.
– Fulvo não fala, resmunga!... – esclarece Kli, dirigindo-se para a ponte.
Samara volta atrás, encaminhando-se para a estalagem de Moutinho. Entretanto, de debaixo da ponte sai o palerma, que abre um sorriso de orelha a orelha quando reconhece o cimbalino:
– Olá, olá, olá!
– Olá, Apuleio! – saúda-o Kli, detendo-se.
O palerma em três pulos sobe a margem, do lado da aldeia, e entra na ponte com passo desengonçado. Diz ele, ainda todo sorridente:
– O gado passou por aqui e acordou-me! Grande trote!
Acompanhado por Apuleio, Kli prossegue o seu caminho. O palerma apanha uma maçã que Lila tinha deixado cair, trinca-a, e pergunta ao cimbalino:
– Onde vais?... Resmugar com o Fulvo?
– Hm, hm! – murmura Kli em assentimento.
– O Fulvo não é guardão!... O Fulvo não é guardão!... – cantarola o outro. – Porque é que dás conversa àquela parva?
Pouco depois, a “parva” vai a entrar no estabelecimento de Asdrúbal Moutinho quando choca com este, que ia a sair.
Oh! – assusta-se ela.
– Olá Samara. Ainda bem que te vejo!
– Não vale a pena tentares demover-me, Asdrúbal – proclama ela secamente. –  Aliás, preciso de algumas coisas para a minha expedição a Valmenor! Espero que não te recuses a fornecer-mas.
– É claro que não – diz Mirhtô, do fundo da loja.
– Samara, parece que vem aí um batalhão do Príncipe! – afirma o homem, segurando-a pelos ombros. – Onde está Kli?
– Foi falar com o Fulvo. Um batalhão, dizes tu?
– Digo eu, não. Disse o Maquito, do Balaio. Eu ia justamente avisar o cimbalino... eles vêm com certeza atrás dele!

Por acaso, no instante em que Kli e o pateta chegam ao templo, o sacerdote aparece, aflito e visivelmente com o fim de fechar a porta. Mais aflito fica ao dar de cara com o cimbalino.
Tu?! – exclama ele. – Não podes entrar! Estamos a celebrar uma cerimónia religiosa! Particular!
– Nesse caso, volto mais tarde. Quero falar contigo.
– O que poderei eu ter a falar com um címbalo? – pergunta, com a porta entreaberta. Mas a curiosidade impõe-se: – Qual seria o assunto da conversa?
Por duas vezes, denotando impaciência, Kli bate com o cajado no chão. Fitando Fulvo nos olhos, diz:
– Os Druidas de Valmenor.
Um olhar esbugalhado estampa-se na cara de Fulvo.
– Não sei nada sobre eles! – exclama. – Nem quero saber!
Retirando-se, pressuroso, fecha a porta com estrépito.
– Oh, oh! Os Druidas chegaram quando a Terra ainda era nova! – recita, contente, o pateta.

Samara e o estalajadeiro desceram a escada e vão em passo apressado pela rua quando avistam o “batalhão”, ao fundo à sua esquerda.
– Os esbirros do Príncipe! – diz Moutinho.
– Aquilo é um batalhão?! – admira-se a rapariga. – São só cinco!
– Talvez haja mais! – diz Moutinho, com ar duvidoso. – Apressemo-nos.
Entretanto os outros também os viram:
Olhem! A miúda do boticário! Com o cartaginês!
– Vão com ar apressado. Aquilo não é normal – pondera um deles.
– Devem ir avisar o címbalo! Vamos! – exclama um terceiro; e todos se põem a correr.
[CONTINUA]

domingo, 24 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (24)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr

Um rapaz entra a correr na estalagem de Moutinho, avisando excitado:
– Asdrúbal! Vem aí um batalhão de gente do Príncipe!
– Um batalhão?! – admira-se o estalajadeiro. – Diabo! Devem andar à procura de Kli!
– Se calhar vêm vingar-se do que aconteceu ontem ao Esturjão! – lembra uma cliente, ansiosa.
O Esturjão? – inquire Moutinho. – É esse o nome dele? Não sabia que conhecias o homem, Lila!...
Lila embaraça-se, deixa cair umas maçãs que pusera numa malga.
– O meu irmão já tinha falado nele! – diz ela, encarnada. – Encontrava-o às vezes nas encostas!
– O que é que interessa onde é que o irmão dela o encontrava?! – resmunga um velho bebedor de cerveja, agitando a caneca. – O que interessa é que já há algum tempo que não tínhamos problemas com o Príncipe; e agora vem aí um batalhão!... Certamente não com boas intenções!
– A culpa é do cimbalino! Foi ele que bateu no outro! – opina um homem gordo, a suar.
– Ainda acabamos por pagar pelo címbalo!... – reclama um quarto cliente, com algum rancor.
– O címbalo, Astolfo?... Tens a boca virada para o insulto – diz o estalajadeiro com um sorriso irónico na expressão grave. – Ainda ontem, se bem me lembro, não te furtaste a chamar nomes ao Esturjão!...
– Chamou-lhe cabrão! – diz o puto Aderbal. E o irmão confirma:
– Pois foi.
Astolfo tem ganas de bater nos miúdos, mas contém-se, à vista do porte do pai. Entretanto, já toda a gente se vira para a porta...
– Que se lixe, tudo isso! – exclama o gordo. – O batalhão é bem capaz de vir para aqui. E eu não quero cá estar quando eles chegarem!
E, numa balbúrdia, precipitam-se todos para a porta.
Um momento! – ordena Moutinho, na sua voz imperiosa, e todos se detêm. Acrescenta ele: – Livre-se alguém de denunciar o paradeiro do cimbalino aos homens do Príncipe. Tratarei eu mesmo de fritá-lo em azeite.
Com a advertência no cérebro, os clientes saem do entreposto e descem a escada num tumulto. Chegados à rua, contudo, param indecisos, olhando para um lado e para o outro; da esquerda, onde ficam as suas casas, virá “o batalhão”. E este, justamente, acaba de entrar na aldeia, passa à porta da oficina do Eslavo, o ferrador, que interrompe o trabalho e os olha de sobrolho louro carregado.
– Para onde vamos? – perguntam-se os clientes de Asdrúbal, receosos.
– A minha casa é para ali – diz um deles, apontando para a esquerda.
– Também a minha! Mas, por ali, ainda damos de cara com o batalhão!
De facto, eles encontram-se perto da entrada oposta àquela por onde chegam os homens do Príncipe, que é do lado da fortaleza, a leste.
– Para o templo! – sugere o gordo, a suar.
– Boa ideia!
– Pedimos ao Fulvo para fazer uma prece! – diz Lila, mais ansiosa do que nunca.
Os fugitivos correm a refugiar-se no templo. Lila deixa cair batatas e fruta. Quando encetam a travessia da pequena ponte, Astolfo reclama:
– Este Asdrúbal ainda nos vai trazer problemas!
– Cartaginês! – responde o velho, ágil nas pernas. – Os Romanos já deram cabo dos da raça dele!
– Esperem por mim! – grita-lhes o gordo.
[CONTINUA]

sábado, 23 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (23)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr

No jardim de Apolinário, Kli e Samara passeiam. Parecem ter serenado e Kli observa, maravilhado, o pequeno reino criado e mantido pelo seu amigo boticário. Ela faz planos para a viagem:
Cipreste, o burro do meu pai, leva-nos rapidamente à Porta! Ele conhece um atalho, julgo eu.
Kli, com a cabeça mais fria, parece reticente:
– Samara, eu estive a pensar melhor... no que o estalajadeiro disse... e...
A rapariga estaca, encarando-o com um brilho duro no olhar e uma voz exaltada:
O quê?!  Também tu me abandonas? Vocês são todos uns cobardolas!
Cobardolas, eu?! – insurge-se o cimbalino. Após um momento de amuo mútuo, vendo o disparate da situação, ele justifica-se: – Eu já te disse que um cimbalino não volta com a palavra atrás! E não te esqueças de que Apolinário é um grande amigo meu. Além disso… acredita, tenho outra forte razão para o encontrar!... Vir aqui a Valmaior não foi só uma visita de cortesia.
Samara lança-lhe um olhar aparentemente desinteressado mas que trai a sua curiosidade.
– O que vieste cá fazer, então?
Kli, de braços cruzados, olha-a francamente, como se a medisse sob vários parâmetros.
– Bem… o teu pai prometeu-te em casamento!… – diz ele.
O quê?! – exclama ela, abrindo os olhos com credulidade juvenil.
– Estou a brincar, tu ainda és muito nova.
– Não sou nada.
– És. Mas em outra altura falaremos sobre o que aqui me trouxe.
Kli remete-se ao silêncio, observando no céu o voo errático de um trio de pardais. Sim, Apolinário falara-lhe de Samara, com estranhas evasivas. Mas falara-lhe também, em grande segredo, de misteriosos druidas, homens encapuçados, e da fabulosa relíquia sagrada de que ele próprio era o secreto guardião: Sirid-Ambar, uma das sete fontes de poder e sabedoria ancestrais, a mítica e resplandecente…
– E então? – interrompe-o Samara, ansiosa. – Vais ou não vais comigo?
– E tu, queres ou não casar comigo? – encara-a ele abertamente.
Ela enrubesce e os seus olhos cor de mel brilham.
– Ainda sou muito nova para decidir isso.
– Não és, não – replica o cimbalino, sorridente. – Em qualquer caso, antes de tudo, convém encontrar o teu pai. Portanto, já o disse, eu irei à sua procura!
A rapariga parece confusa:
– Mas, então?!
– O que eu queria dizer – prossegue Kli, agora sério e mais seguro de si –, é que, mesmo não falando da Porta, teremos que enfrentar, para além dela, os Druidas... que, ao que consta, são criaturas terríveis! E há ainda a história das anãs brancas e gigantes vermelhas!...
– O que é isso?! – pergunta-lhe Samara, admirada e curiosa.
– Seres medonhos que talvez habitem o outro lado da Porta! Portanto, o que eu queria dizer é que... francamente, Samara, isto não é coisa para uma miúda!...
– Uma miúda?! – protesta ela, orgulhosa. Empina o peito, dizendo: – Eu tenho 14... 15 anos!
Kli não pode evitar fitar-lhe os pequenos seios espetados sob a túnica.
– Sim, vê-se!...
A seguir, retoma a caminhada. Não se apercebe que está a falar sozinho, que a rapariga ficou para trás, enquanto ele parece discorrer sobre um assunto filosófico:
– Mas, Samara, não se trata de um passeio no campo!... Estamos a falar de uma missão perigosa e tu talvez não estejas preparada para...
Detém-se porque acaba de descobrir um alvo, preso a um tabique de madeira e até aí escondido por uma sebe florida.
– Olha, um alvo!  Para que serve isto aqui?!
Mal acaba a pergunta, para seu enorme susto, uma flecha passa-lhe de raspão e crava-se no centro do objeto: TCHAC!
– Para isso! – responde a miúda, altiva, baixando um arco. Uma aljava com flechas repousa no chão, a seu lado, encostada a uma pedra.
Kli, espantado, admira o acerto da flecha.
– Bom, bom... – pondera ele. – Pensando melhor... talvez possas ir comigo!
Ela salta-lhe para o pescoço toda contente, imprimindo-lhe um beijo na cara.
– Ah, vais ver que não te arrependes!
– Espero que não. É perigoso deixar-te por aí!... Ainda podes ferir alguém!...

Entretanto, aproxima-se da aldeia um grupo de cinco homens sinistros e bem armados, entre os quais o gordo sovado por Kli na floresta. Ao longe, a medo, um lavrador observa-os. No meio do silêncio que se gerou, ouve-se um cão ladrar e ganir quando um dos homens lhe atira uma pedra.
[CONTINUA]

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (22)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


HÃ!... HÃ... HÃ!... – ouve-se arquejar de dentro da choupana de Javardo.
Javardo! – grita o Príncipe, de pé no pátio, com as mãos à cintura. Atrás dele, a velha e o cozinheiro olham divertidíssimos também na mesma direção: a choupana.
Irra! – berra aquele, lá dentro.
Passado um bocado, sai, quase nu:
– Que é?! Sim! Oh! Perdão, Senhor!...
– Javardo, deixa ver a espada! – grita um dos miúdos lutadores da véspera.
– Puto descarado! Vem cá que eu te enfio a espada pelo cu acima! – urra o visado.
Toda a populaça se ri a valer.
– Parece que estás sempre em missão!... – comenta o Príncipe, com um riso jocoso.
– Irra! É que... – balbucia Javardo, mas o Príncipe atalha-o asperamente:
– Chega de disparates! Onde está o címbalo que me prometeste?
– Eu?!... – começa a protestar o lugar-tenente. Depois, assume um tom de sargento: – Deve estar para chegar, Senhor! Já mandei homens à aldeia!
– Porque não foste tu? – pergunta-lhe Lascário secamente. Javardo fica interdito.
– Não sei, não me ocorreu!... Os deveres!...
A velha e os outros escangalham-se a rir. “Os deveres!”, cacareja ela.
– Sim, Senhor! Não me ocorreu, mas agora já vou!
– Agora não vale a pena – diz-lhe Lascário quando ele já virava costas. – Começa mas é a preparar a expedição! Que eu tenho a impressão que é para amanhã!
Javardo grunhe, fazendo um esgar e abrindo os olhos redondos:
Para amanhã?!!  Oh, sim Senhor! Vamos a isso!
– Javardo, não te esqueças de levar a espada! – brada o miúdo, galhofeiro, e novamente todos largam à gargalhada.
[CONTINUA]

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (21)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


Os bruxos, no torreão de Carcavel, parecem também tomar o pequeno almoço. Cavaqueiam sobre trivialidades.
– Ouviram as notícias, colegas? Um terrível incêndio lavra na Herdade dos Suplícios!
– É terrível, colega! Terrível!...
– Foi algum imbecil que se esqueceu de cuidar do fogo!
Rezingam durante um momento e depois um deles oferece aos restantes:
Caviar, colegas?
– Obrigado. – agradece um dos outros, estendendo um pratinho.
– Com moderação – aconselha o terceiro, aceitando também a oferta. – Caviar é funesto para o fígado.
– Achas? – pergunta o primeiro.
Passado um bocado, o terceiro bruxo comenta, olhando para o lado, aparentemente confuso, para um corpo dissecado sobre uma mesa:
– Que estranho indivíduo!...

Na estalagem, encostado ao balcão, Kli conversa com Asdrúbal Moutinho, ocupado do outro lado a limpar canecas. O seu filho de 7 anos, Amílcar, ajuda-o enquanto cantarola uma toada infantil. De lá de dentro, da cozinha, chega a voz melodiosa de Elissa, que parece dar réplica ao miúdo. Ao fundo do salão, a clientela observa-os com a orelha atenta.
– Sim, é verdade, havia ali vestígios de luta – confirma Moutinho. – Parece que o Apolinário se debateu!
– Portanto, não há dúvida que alguém raptou o infeliz. Os druidas ou o Lascário.
– O Aplinário lutou com monstros e fantasmas romanos! – assegura Amílcar.
– Sabes, essa hipótese do Lascário...
O estalajadeiro é interrompido pela entrada abrupta de Samara.
– Asdrúbal, onde está o burro do meu pai? Eu vou com ele passar a Porta do Tormento Amarelo!
Asdrúbal olha-a interdito. Passado o momento de estupefação, pergunta-lhe:
O burro?... Samara, endoideceste de vez?! Queres sujeitar-te a sofrer o Tormento?
– Qual Tormento?  Isso são histórias da carochinha!
«Carochinha?!», pensa Kli, perplexo, olhando para ela. Amílcar pede ao pai que lhe conte uma dessas histórias mas Asdrúbal Moutinho endireita-se, enchendo-se de brios e diz:
– Menina, mais respeito! Eu sei, por ter ouvido da boca do meu próprio avô, de um rapaz da sua época (estouvado como tu) que deu em atravessar a Porta. Pois bem: não conseguiu! E o Tormento Amarelo perseguiu-o durante toda a sua vida... que não foi longa!...
A miúda parece acalmar, enquanto a clientela se mantém a uma distância não comprometedora, observando-a e a Kli em tom crítico; afinal não acolheu ela aquele vadio cimbalino para lá passar a noite… sozinho com ela?!...
Passada a tempestade, o estalajadeiro, numa voz de conciliação, argumenta:
– Vá, não sejas estouvada!... O desaparecimento do teu pai tem-te deixado perturbada, eu sei!...
Mas ela tem novo ataque de irritação:
– Mas então um de nós desaparece e vocês ficam aqui sem fazer nada?!
– Não é bem um de nós... – diz Moutinho sem pensar. Arrepende-se demasiado tarde.
Samara responde-lhe, friamente:
– Pois não. Bem sei. É um cimbalino. Como eu!
Kli enerva-se. Lança ele a Moutinho:
O quê?! Pois um cimbalino não é gente? Não conta?! Meu amigo, antes de vocês chegarem, já nós cá andávamos há muito tempo! Que sabem vocês dos deuses voadores ou do reino submergido da Atlântida?
– Pronto, pronto!... – defende-se Moutinho, ao lado de um atónito Amílcar. – Peço desculpa, não queria dizer o que disse!...
– Mas ela não é uma cimbalina!... – diz uma mulher admirada, ao fundo.
– Que sabes tu disso? – lança-lhe o estalajadeiro com tal veemência que a mulher se cala e engole em seco. Depois, vira-se para a rapariga, amuada: – Samara, sabes bem que o teu pai me acudiu várias vezes, e à minha família, e que até já me salvou da morte. Tenho por ele a mais elevada estima.
A miúda assenta uma mão no balcão, desafiando-o:
– Pois, então, vem comigo!
Asdrúbal Moutinho fica calado, remoendo e estreitando os olhos. Ela vira-se e olha em torno, para a assistência.
Venham todos comigo! – incita. – Vamos passar aquela Porta e mostrar que o Tormento não passa de uma lenda!
O constrangimento geral é notório. Mas, enfim, um dos presentes, cheio de brio, exclama:
– Ela tem razão! Seremos tão poltrões que deixaremos um amigo sem assistência?
Surpreendentemente, um brado de exultação acolhe estas palavras.
– Vamos à procura dele! – entusiasma-se o homem de brio.
– Ir à procura... já fomos!... – comenta um, mais moderado.
– Atravessar a Porta? – inquire outro, a medo.
– Talvez amanhã!... – sugere um quarto.
– Sim, sim, talvez!... – diz um quinto, enquanto pega no chapéu e se retira. – Passem bem, tenho a horta para cuidar!...
E assim vão todos saindo...
– Eu tenho o trabalho já atrasado!
– É preciso arar o campo!...
– A minha mulher espera os ovos de gansa!
O homem de brio fica por último; diz ele: – Vamos pensar nisso. É a única proposta decente. – E retira-se também, sem olhar para trás: – Sim, vamos pensar nisso!...
O estalajadeiro limpa o balcão. Kli, com algum descrédito, comenta:
– São estes os valorosos Lusitanos, que tantas vezes sovaram os Romanos?
Moutinho resmunga, elevando o sobrolho. Firme e orgulhoso, diz à miúda:
– Samara, eu não vou contigo. E aconselho-te, a ti própria, a não ires. Eu sei que não é possível atravessar a Porta. E não ganhamos nada em ficar com o Tormento colado à pele e à alma.
Kli, contra o que é hábito, já está enervadíssimo.
– A Samara tem razão: vocês são todos uns cobardes! Pois eu vou com ela!
A rapariga olha para ele. Um sorriso lindíssimo abre-se-lhe no rosto pela primeira vez. Exclama, com os olhos ansiosos muito abertos:
Vais?!... Vais mesmo?
– Ora essa! Vou! Um cimbalino nunca volta com a palavra atrás! Embora não seja um de nós!... – completa, fitando ironicamente o estalajadeiro.
[CONTINUA]

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (20)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


Kli e Samara, sentados frente a frente na grande mesa que ocupa o centro da cozinha, tomam chá. Sobre a mesa, iluminada pela grande janela que dá para o jardim, há pão, queijo, bolachas, biscoitos e fruta. Ela está de costas para as prateleiras que se encostam à parede e sobre a qual, como na loja, há grande variedade de coisas: boiões, frascos, caixas, frutas, ervas, lucernas, etc. Kli repara que a arquitetura do compartimento (aliás, da casa toda) é característica dos cimbalinos que se acomodam a habitações: com linhas arredondadas em esquinas e cantos.
– Desculpa-me!... Fui tão parva! – diz ela, contrita. – O estúpido do Apuleio é que tem razão.
– Não digas isso, Samara. Deverias ser menos exaltada, talvez – contrapõe Kli. – Mas, mesmo exaltada, és bonita.
– Não brinques comigo – protesta ela com um sorriso constrangido. Mira o anel na mão aberta e comenta: – Devo ter batido nele, durante a noite, atirando-o ao chão. – Abana ligeiramente a cabeça, não muito convencida. E, passado um momento, fita Kli e inquire, ruborizada: – Mas, afinal, o que foste fazer ao meu quarto?
– Não fui ao teu quarto, Samara. Na verdade, não passei da porta. Fui lá porque… é difícil explicar… acordei sobressaltado, com a nítida intuição de que alguma criatura, alguma coisa, tinha entrado no teu quarto e te ameaçava.
Samara estremece. Kli prossegue:
– Uma força imperiosa levou-me a ir lá. Imediatamente! Subi a escada e creio ter ouvido um tilintar e um som estranho, talvez de asas, pouco antes de abrir a porta. Quando o fiz, nada vi de extraordinário. Mas senti!... Tenho quase a certeza de que alguma criatura ali tinha estado.
Ela estremece de novo e abraça-se.
– Estás a assustar-me…
– Talvez fosse apenas uma ave!... Mas creio que tentou roubar-te o anel.
– OH! Uma gralha ladra? Já ouvi falar nelas.
– Talvez. Mas talvez convenha não te separares mais do anel.
– Nunca mais! É um anel mágico, disse-me o meu pai, e é muito importante para mim. Tenho-o desde que me lembro.
Samara observa mais uma vez o belo anel.
– É tão bonito!
– Passaste bem a noite? – pergunta Kli, sondando-a. Um eco do estranho pressentimento que o fez acorrer ao quarto dela provoca-lhe um aperto no coração.
– Com algum frio, porque estava sozinha – responde ela, com picardia talvez excessiva. – Não ligues, estou a armar em parva outra vez!... Para ver se não me enervo demais! Ou, se calhar, tive mesmo frio!... Às vezes, sinto-me tão sozinha, tão longe…
O cimbalino bebe um pouco de chá, escamoteando o desassossego e tentando avaliar a bela adolescente que tem à sua frente... e se é ou não verdade que começa a sentir desejo por ela!... Fita-lhe os olhos baixos, revê-a nua à janela e dificilmente consegue remover essa imagem do pensamento.
– Ora bem... nasceu mais um dia, e o teu pai sem aparecer!... – comenta ele, adormecendo a inquietação.
Franzindo a fronte, a rapariga murmura um seco “Hm!” como resposta.
– O que achas que lhe aconteceu?
Ela levanta-se decididamente, para ir buscar chá ao fogão de lenha, enquanto diz:
– Não sei. Mas vou averiguar hoje mesmo!
Kli olha para ela.
– Estás a falar a sério?... Ouvi dizer que ninguém passa a Porta do Tormento Amarelo!...
– É o que dizem – responde ela, de costas junto ao fogão.
Samara retoma o seu lugar à mesa, segurando a chávena com ambas as mãos. Kli inclina-se para a frente sobre a mesa, olhando-a nos olhos, como numa conversa sigilosa.
– Ninguém o tentou, até hoje? – pergunta ele. – E ninguém tentou realmente encontrar o teu pai?
– Não! – exclama ela. – Bando de cobardes! Limitaram-se a ir olhar para a Porta e recolher um sapato perdido!
Ela resmunga algo, enquanto trinca um biscoito.
– Disseram que havia ali vestígios de luta – diz, passado um bocado, mais calma. – E é verdade, eu própria os vi.
– Vestígios de luta?! – espanta-se o cimbalino. Acabando o desjejum, levanta-se. – Quero tirar isso a limpo! Vou falar com o Asdrúbal.
[CONTINUA]

terça-feira, 19 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (19)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr

Na fortaleza do Príncipe, esmaecida pela réstia de neblina matinal, ouve-se a sua voz gritar através da janela do quarto:
Javardo!
– Hem?! O quê? – diz um dos magos, no piso de cima, estremunhado.
– Um javardo... – balbucia outro, entreabrindo os olhos. – Trazem um javardo para o sacrifício...
– Deixem-nos dormir!... Trabalhámos até tarde... – reclama o terceiro, rabugento.
O chamamento do Príncipe é repetido mais abaixo. Por sua vez, a mulher que na véspera depenara as galinhas assoma à porta do torreão e berra esganiçada:
– Javardo!
E este sai de uma espécie de choupana, quase nu:
– Irra!! Que é?
– O Príncipe! – grita-lhe a mulher, galhofeira.
– Megera! – lança-lhe o lugar-tenente. Depois, volta para dentro e diz a alguém:
– Adeus, minha Estrela Rúbia! Tenho que ir!
– Adeus!... – responde-lhe uma voz fatal. – Meu Boi de Cobrição!
Num ápice, Javardo corre para o torreão, passa pela velha, que ri e cacareja enquanto descasca umas batatas, sobe três lances de escada e apresenta-se à porta do quarto do Príncipe.
– Javardo! – vocifera este, ainda deitado no leito, ao lado de um corpo coberto do qual afloram cabelos escuros sobre a almofada. Carcavel parece irritado. – Onde está o címbalo, que eu queria hoje aos pés da cama?
– Irra, senhor, não sei! – protesta o inquirido. – Os homens ainda não voltaram!
– Sem um címbalo para o sacrifício dos magos, parece que terei que lhes entregar um javardo!... – afirma Lascário, arredando as cobertas enquanto se levanta da cama. Usa uma camisa de dormir de linho bordado a ouro.
Hem! – protesta o lugar-tenente, com uma gota de suor na testa.
Uma mulher jovem soergue-se no leito e fita Javardo com os seus olhos escuros, acusadores e frios, que ele aprendera a temer. O lugar-tenente, incomodado, desvia o próprio olhar daquelas pedras de ónix e das pródigas mamas que assomam pela abertura da camisa.
– Que barulho é este? – pergunta Lascário, face ao clamor que se faz ouvir no pátio. – Terão capturado o címbalo?
Acorrem ambos à janela, onde se apertam para olhar para baixo. No pátio, dois homens, no meio da gente da fortaleza, empurram um outro.
– Não – diz Javardo. – Parece que apanharam o Esturjão!
Um dos captores, avistando o Príncipe e o seu lugar-tenente à janela, dirige-se àquele, com verbo polido:
– Senhor, aqui está Esturjão, que encontrámos a dormir no meio das cabras. Acordámo-lo e ele tentou fugir!
– Senhor! – toma o segundo da palavra. – Como achássemos isso estranho, decidimos trazê-lo!
– Fartou-se de dizer palavrões, durante todo o caminho! – volta o primeiro. – Mas confessou finalmente que o címbalo está na aldeia!
– Ou estava... ontem! – exclama o companheiro, olhando furibundo para Esturjão.
– Mas porquê, meu caro Esturjão? – quer saber o Príncipe, exortando-o da janela. – Porque me faltaste ao serviço? Porque me atraiçoaste, Esturjãozinho?
Esturjão começa a choramingar.
– Piedade, nobre Senhor! – soluça ele. – Não tive culpa, o canalha apanhou-me à traição!...
– O que disse Esturjão? – pergunta Lascário aos guardas, com um misto de interesse genuíno e contrariedade. – Não ouvi.
– Disse que foi apanhado à traição e pede piedade! – brada um dos guardas.
– Piedade, Senhor!... – repete o prisioneiro, num lamento. – Tive medo de voltar aqui e ser... (ainda mais baixo:) mordido!...
O Príncipe, aborrecido por não o conseguir ouvir, apesar de se ter debruçado mais à janela, grita aos guardas:
– Mas o que está ele a dizer agora?
– Diz que teve medo de voltar e ser mordido, Senhor!
A velha das galinhas desata a rir, em gargalhadas estrepitosas: – Ha, ha, ha!... Mas que javardice!...
Javardo, que reentrou um pouco, espuma de raiva e cerra a mão direita como se a quisesse esganar.
– Pensei em fugir e abrir um negócio por minha conta! – prossegue o servo, como se falasse consigo próprio.
– E para onde ias tu, grande estúpido?! Para a Helvécia? – pergunta-lhe o Príncipe, zangado.
– Para a América do Sul... – confessa o infeliz, com os olhos baixos.
Mas Lascário já não se interessa pelo que ele diz. Pergunta-lhe, em voz tensa:
– Sabes para onde vais, realmente?
– Para o calabouço! – urra um dos guardas.
– Para o território dos lobos – sugere um miúdo.
– Para casa do Javardo – diz a velha, a rir.
Javardo não se contém. Arremessa-se à janela, apertando o príncipe contra a lateral e berra:
– Velha estuporada! Torço-te o pescoço, como às tuas galinhas!
Incomodado por esta gritaria, mesmo junto à sua orelha, o Príncipe diz-lhe:
– Javardo, esta janela é pequena demais para nós dois.
Com certa dificuldade, ambos se retiram para dentro. 
– Leva-me aquele imbecil aos bruxos – ordena Carcavel. – Eles que façam com ele o que entenderem!
– Porque não a velha? – insinua Javardo.
– Porque a velha foi minha ama-de-peito, Javardo.
– Mas ela já não tem peito, Senhor!...
Mas já o teve e era suave e delicioso. Mamei até aos 12 anos!
«Por isso a velha ficou tão seca!...», pensa Javardo, soltando um grunhido. E cruza o olhar com o da jovem recostada na cama, que desenha no rosto um sorriso cínico ou amargo.
O Príncipe diz-lhe:
– Agora, vai cumprir o que eu te mandei. Se não há nem um javali nem um cimbalino para os bruxos, haverá um esturjão!
Javardo faz um brusco assentimento com a cabeça e sai. Carcavel abeira-se da janela e olha para o grupo que, à volta de Esturjão, o insulta e agride. Murmura:
– Ah, Esturjão, se ao menos não tivesses atraiçoado a minha confiança!...
– Meu Príncipe! – chama a mulher, do lado de dentro.
[CONTINUA]