Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Na estalagem de Asdrúbal Moutinho, o palerma pôs-se a choramingar:
– Hiiin! Hiiin!... Ele
desapareceu! Escafedeu-se!
– Acalma-te, Apuleio!... – consola-o o dono da casa. – Na
minha opinião, a miúda pode ter sido adotada. Todos sabemos que o Apolinário
tem um coração de ouro. Como também o tinha a desaparecida Sandália, sua
mulher.
Um homem que estava a matutar já há algum tempo, intervém
extemporaneamente:
– Perdão! Se ela fosse filha de um irmão de Apolinário,
ainda assim seria filha de um cimbalino!
– É uma situação insolúvel!... – pondera uma sólida mulher.
Narra a crónica de Lúcio Simplex que:
“Nesse instante, segundo o estalajadeiro Asdrúbal Moutinho, chegou um servo do Príncipe: um indivíduo de má catadura, cuja ruindade era evidente até no mais pequeno pelo do braço.”
Todos se calam e se afastam da mesa, onde apenas Kli e o
estalajadeiro permanecem; aquele continua a comer, fitando o recém-chegado pelo
canto do olho. O homem, magro e alto, com uma faca ao cinto e uma cicatriz na
cara, posta-se atrás dele, mirando-o de cima para baixo, e de frente para o
estalajadeiro. Vai logo ao assunto:
– O meu mestre quer saber se algum vadio cimbalino apareceu
por aqui. Paga bom dinheiro pela entrega do indivíduo. – Passado um momento,
completa: – Trata-se de um perigoso assaltante de estrada.
“Com o fulgor e a rapidez de um relâmpago, Kli Van-Kli pôs-se de pé e lançou mão ao bastão.”
– Grande mentiroso! – proclama Kli, agravado, segurando
firmemente o bastão na sua frente. – Diz ao teu mestre (“e, aqui, viu-se ironia nos seus
olhos”) que o perigoso assaltante está aqui à espera dele, para lhe
acertar umas pauladas na cabeça!
Os Cimbalinos, mesmo os mansos, têm fama de ser grandes
lutadores com a vara, evidenciando, segundo testemunhas, habilidades sobrenaturais. Talvez por isso,
após uma contração nervosa da face, o esbirro do Príncipe sai sem dizer
palavra.
Lentamente, os presentes voltam a aglutinar-se em torno da
mesa. Mas Asdrúbal Moutinho convida-os a sair:
– Meus amigos, gostaria de ficar sozinho com o nosso
visitante.
Quando todos saíram, o estalajadeiro esclarece Kli a
respeito do Príncipe:
– Chama-se Lascário Carcavel e é um tipo
mesquinho e perverso. Prefiro não ter problemas com ele. Por isso, quando
acabares a refeição, seria melhor ires embora.
– Está bem – diz, simplesmente, o cimbalino. – Mas onde é
que ele vive? Não aqui na aldeia, é óbvio.
– Livra! Felizmente só o vemos, ou a alguém da sua laia, de
vez em quando. Mas, entretanto, pagamos pela sua “proteção”.
– Proteção… Contra quem?
– Contra bárbaros e assaltantes de estrada, diz ele. Mas os
assaltantes, ao que parece, andam quase todos à sua conta. E assim, o nosso
Príncipe lucra duplamente. De qualquer modo, aqui, quem faz a lei é ele !...
– Assaltantes de estrada!... – exclama Kli. – Eu próprio
tive que lidar com um, há apenas três dias.
– Não é invulgar, por estas bandas; sobretudo para lá da
floresta alta, por onde tu chegaste. Mas parece que o bandido não te deixou
grande mossa!...
– Era um bocado estúpido, além de ruim. Eu é que lhe deixei
uma grande mossa no crânio!...
[Algum tempo atrás, contra o pôr-do-sol sobre uma
longínqua serra, num caminho de terra ladeado à direita por densa floresta, Kli
dá uma paulada no assaltante, um indivíduo de cabelo e barba hirsuta. Diz Kli:
–
E uma!... (PAF!)
Um urso e uma ursa, amancebados na
floresta que beira a estrada, apreciam a luta.
– E duas!... (Crac!) E três! (BONG!)
– E duas!... (Crac!) E três! (BONG!)
Comenta
o urso: – Boa luta! Valente!
Responde
a ursa: – Ai, urso, que violência!]
– Vais ver que o desgraçado ainda resolve queixar-se ao Príncipe – comenta o estalajadeiro com um riso irónico. – Grande Lei nós temos por aqui!...
– E os romanos? O tal Sulpício[1]?
– quer saber Kli.
– Não me fales de romanos!... – adverte Asdrúbal Moutinho; –
Que eu sou descendente de cartagineses! Sulpício está na Bastetânia, bem longe,
e está bem onde está! Antes um Lascário
que um Sulpício!...
– Livra!... – diz alguém.
O estalajadeiro vira-se vivamente e avista um adolescente,
de 13 ou 14 anos, que estava escondido atrás de um pilar.
– Que é que estás aí a fazer? – tonitrua o homem; mas depois
amacia a voz: – Vem cá, meu biltre, vem conhecer um caminhante! Vem cá, eu não
te bato!...
E o rapaz lá se aproxima. Com uma ternura um pouco bruta, o
estalajadeiro segura-o num abraço, acrescentando:
– ... embora merecesses!...
Aquele é o seu filho mais velho, Aderbal Moutinho.
– Todos vocês são Moutinho? – inquire Kli.
– Todos os que descendem do nosso glorioso antepassado
Aníbal R. Moutinho. Homem como já não há!... Sabes, tenho muitos parentes e
outros dois filhos: Amílcar, o mais novo, e, entre ele e Aderbal, a “princesa”
Elissa. Andam por aí, algures!... Agora, vem cá ver uma coisa! – convida o
estalajadeiro, levantando-se com a ajuda das mãos poderosas.
Leva o cimbalino até à porta, que ultrapassa. Lá fora, os
clientes há pouco postos na rua e que se tinham juntado à beira da escada,
esticam o pescoço, como se aguardassem novidades. No alpendre, Asdrúbal
Moutinho aponta para o topo de uma alta colina a leste da aldeia, que se ergue
acima e à direita da floresta por onde veio Kli. Ali em cima, muito ao longe,
avista-se uma muralha de pedra com paliçadas e entrevê-se, no centro da
fortificação, um torreão quadrado, também de pedra. Um fio de fumo cinzento-azulado
sobe para o céu. Uma estrada desce ao vale, por uma depressão, atravessando por
uma ponte em pedra um riacho ziguezagueante, aquele mesmo que Kli bordejou.
– Vês, lá no alto? É o reduto do Príncipe – diz o
estalajadeiro, e todos olham para lá. Depois, prossegue: – Muitas malvadezas já
ali se fizeram!...
Todos se põem a falar sobre desmandos reais ou imaginários:
– Diz-se que ele tem duzentas escravas para o servir!...
– Não se trata mal.
– Garfou a jovem Dária, que era bem bonita – comenta um
velhote, lambendo o beiço.
Asdrúbal Moutinho resmunga e põe a mão ao ombro de Kli,
fazendo menção de voltar para dentro.
– Vá, agora vem acabar de comer – diz ele.
Mas nisso, alguém exclama:
– Olhem quem vem lá!
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