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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (8)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr


Seguido pelo seu “companheiro”, Kli dirige-se a uma espécie de estalagem/entreposto, que fica em frente, do outro lado da rua. É um grande casarão com um largo e ligeiramente elevado alpendre à entrada. Nas paredes laterais, junto ao chão, há uma fileira de pequenas janelas com grades, que fazem a ventilação e iluminação das caves.
Ali, apresenta as recomendações de Lúcio Simplex ao estalajadeiro, um homem de porte imponente, nuca taurina, grandes entradas nas têmporas e bigode e pêra com um desenho peculiar. Kli identifica-se e, enquanto come e toma uma bebida, diz que procura o seu amigo Apple Li-Nar, também conhecido como Apolinário; e esclarece:
– Na última vez em que o vi, há sete luas e meia, no Congresso Cimbalino de Ervanária, ele convidou-me para o visitar. E aqui estou!...
Para as pessoas da civilização, os cimbalinos causam sempre reserva porque têm um modo de vida estranho e porque são frequentemente associados a práticas mágicas. Também por isso, Asdrúbal Moutinho acha singular esta visita, ainda para mais neste momento. Haveria alguma ligação entre esse tal Congresso e o que aconteceu recentemente?
O estalajadeiro resmunga, remexendo o pano em cima da mesa. Mas Kli consegue vencer o seu retraimento, percebendo que os outros presentes no largo salão se calaram e apuram o ouvido. Fica então a saber que o boticário desapareceu, há uns bons dez dias, sem deixar outro rasto que não um sapato e o bornal, perto da Porta, além do seu burrico, que voltou sem o amo.
– Foi raptado pelos druidas! – remata o estalajadeiro, com ar grave.
Druidas? – inquire Kli, curioso, mirando o interlocutor.
Asdrúbal Moutinho debruça-se sobre a grande mesa, com ar ainda mais grave.
– Sim. Os Druidas de Valmenor! – murmura ele. Mas todos os outros presentes parecem ter ouvido.
Entretanto, vários deles juntam-se à volta da mesa.
– Sabe-se lá que suplícios já fizeram ao pobre Apolinário – diz um.
– Se calhar, já lhe extraíram os olhos ou os dedos grandes dos pés para prepararem alguma das suas poções diabólicas!... – comenta outro.
– Que horror! – exclama Kli; e, pouco depois: – Mas quem são eles? E onde é Valmenor?
Faz-se um silêncio pesado. O estalajadeiro esclarece, enfim:
Valmenor? É o vale que se segue a Valmaior. Parece que é mais pequeno do que este... mas dele temos apenas descrições antigas e vagas. O nosso amigo Lúcio talvez possa esclarecer-te melhor.
«Um e outro vale são separados pela Porta do Tormento Amarelo... que ninguém se atreve a ultrapassar!... O Tormento é terrível!
– Ninguém, a não ser aqueles druidas de mau agoiro – acrescenta logo um dos presentes, entre irónico e receoso.
Novamente se faz silêncio sepulcral, cortado apenas por um tossicar ligeiro.
– Havia uma rapariga lá na casa... – diz, baixinho, o cimbalino.
Ah! – responde o estalajadeiro. – É a Samara! A filha dele!
– Não é muito certa da cabeça – afiança um sujeito enfezado, olhando para o copito que tem na mão.
– Filha!... – apostrofa logo outro, com ar de descrédito.
– Como se uma rapariga que é gente pudesse ser filha de cimbalinos!... – acrescenta um terceiro. Embora manso, Apolinário é um cimbalino.
Han, han! – grunhe o estalajadeiro, advertindo os restantes da presença de outro cimbalino. Kli limita-se a franzir o sobrolho.
– Ah, sim! Quero dizer... – corrige atabalhoadamente o visado: – Talvez tendo em vista que se trata de cimbalinos mansos... Talvez possa[1]!...
– Pois, se calhar, pode! – diz logo um terceiro com convicção. – É mestiça. Se calhar, por isso é que não é muito certa da cabeça!
Todos se põem a discutir a questão pela centésima vez como se fosse a primeira.
– Perdão! Há em todo esse assunto algo muito estranho! E, na verdade, ninguém a viu nascer, eles só aqui chegaram quando ela já tinha um ano de idade!...
– Deve ser alguma sobrinha... – aventa alguém: – de algum irmão que sofreu uma desdita.
O palerma responde, com um sorriso em que faltam dentes:
– Nesse caso, ela chamava-lhe tio. E ela chama-lhe pai, que eu já ouvi.
É logo censurado por um circunstante, em termos ásperos:
– Está calado, palerma! Só dizes palermices!

RraaAAHH! – urra alguém de dentro da floresta alta. – Cá está!!...  SNIF! SNIF! Descobri a pista dele!!
– Até que enfim! Há meia hora que andas a foçar no chão! – responde uma segunda voz, igualmente agreste.
– Como é que queres que eu descubra a pista de um cabrão de címbalo, sem ser pelo cheiro?
Entretanto, o caracol que quase foi pisado por Kli sai da proteção das ervas para o caminho. «Levantou-se a névoa», considera ele. «Já posso retomar as minhas voltas!...».
Infelizmente, é logo tragado por um beiço barbado e voraz:
Rrraah! SNIF! SNIF!... SLURP!
E na floresta ouve-se um comentário disparado com agressividade e satisfação:
– Além de que no chão há sempre coisas apetitosas para comer!...
[CONTINUA]



[1] Segundo o cronista Plínio, o Velho, é necessário distinguir os cimbalinos “mansos” dos “bravos”. Os “mansos” (como Kli Van-Kli) convivem com os homens normais, embora habitualmente pouco; são quase imberbes e alguns, raros (como Apolinário), adaptam-se até a viver em aldeias. Já os “cimbalinos bravos” ou “selvagens” são mais peludos, agressivos e imprevisíveis; entendem-se com os lobos e outras criaturas bravias, e evitam a civilização, onde têm muito má fama.

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