Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Seguido pelo seu “companheiro”, Kli dirige-se a uma espécie de estalagem/entreposto, que fica em frente, do outro lado da rua. É um grande casarão com um largo e ligeiramente elevado alpendre à entrada. Nas paredes laterais, junto ao chão, há uma fileira de pequenas janelas com grades, que fazem a ventilação e iluminação das caves.
Ali, apresenta as recomendações de Lúcio Simplex ao
estalajadeiro, um homem de porte imponente, nuca taurina, grandes entradas nas
têmporas e bigode e pêra com um desenho peculiar. Kli identifica-se e, enquanto
come e toma uma bebida, diz que procura o seu amigo Apple Li-Nar, também
conhecido como Apolinário; e esclarece:
– Na última vez em que o vi, há sete luas e meia, no
Congresso Cimbalino de Ervanária, ele convidou-me para o visitar. E aqui
estou!...
Para as pessoas da civilização, os cimbalinos causam sempre
reserva porque têm um modo de vida estranho e porque são frequentemente
associados a práticas mágicas. Também por isso, Asdrúbal Moutinho acha singular
esta visita, ainda para mais neste momento. Haveria alguma ligação entre esse
tal Congresso e o que aconteceu recentemente?
O estalajadeiro resmunga, remexendo o pano em cima da mesa.
Mas Kli consegue vencer o seu retraimento, percebendo que os outros presentes
no largo salão se calaram e apuram o ouvido. Fica então a saber que o boticário
desapareceu, há uns bons dez dias, sem deixar outro rasto que não um sapato e o
bornal, perto da Porta, além do seu burrico, que voltou sem o amo.
– Foi raptado pelos druidas! – remata o estalajadeiro,
com ar grave.
– Druidas? –
inquire Kli, curioso, mirando o interlocutor.
Asdrúbal Moutinho debruça-se sobre a grande mesa, com ar
ainda mais grave.
– Sim. Os Druidas de
Valmenor! – murmura ele. Mas todos os outros presentes parecem ter ouvido.
Entretanto, vários deles juntam-se à volta da mesa.
– Sabe-se lá que suplícios já fizeram ao pobre Apolinário –
diz um.
– Se calhar, já lhe extraíram os olhos ou os dedos grandes
dos pés para prepararem alguma das suas poções diabólicas!... – comenta outro.
– Que horror! – exclama Kli; e, pouco depois: – Mas quem são
eles? E onde é Valmenor?
Faz-se um silêncio pesado. O estalajadeiro esclarece, enfim:
– Valmenor? É o vale que se segue a
Valmaior. Parece que é mais pequeno do que este... mas dele temos apenas
descrições antigas e vagas. O nosso amigo Lúcio talvez possa esclarecer-te
melhor.
«Um e outro vale são separados pela Porta do Tormento Amarelo... que
ninguém se atreve a ultrapassar!... O Tormento é terrível!
– Ninguém, a não ser aqueles druidas de mau agoiro –
acrescenta logo um dos presentes, entre irónico e receoso.
Novamente se faz silêncio sepulcral, cortado apenas por um
tossicar ligeiro.
– Havia uma rapariga lá na casa... – diz, baixinho, o
cimbalino.
– Ah! – responde
o estalajadeiro. – É a Samara! A
filha dele!
– Não é muito certa da cabeça – afiança um sujeito enfezado,
olhando para o copito que tem na mão.
– Filha!... – apostrofa logo outro, com ar de descrédito.
– Como se uma rapariga que é gente pudesse ser filha de
cimbalinos!... – acrescenta um terceiro. Embora manso, Apolinário é um cimbalino.
– Han, han! –
grunhe o estalajadeiro, advertindo os restantes da presença de outro cimbalino. Kli limita-se a franzir
o sobrolho.
– Ah, sim! Quero dizer... – corrige atabalhoadamente o
visado: – Talvez tendo em vista que se trata de cimbalinos mansos... Talvez possa[1]!...
– Pois, se calhar, pode! – diz logo um terceiro com
convicção. – É mestiça. Se calhar, por isso é que não é muito certa da cabeça!
Todos se põem a discutir a questão pela centésima vez como
se fosse a primeira.
– Perdão! Há em todo esse assunto algo muito estranho! E, na
verdade, ninguém a viu nascer, eles só aqui chegaram quando ela já tinha um ano
de idade!...
– Deve ser alguma sobrinha... – aventa alguém: – de algum
irmão que sofreu uma desdita.
O palerma responde, com um sorriso em que faltam dentes:
– Nesse caso, ela chamava-lhe tio. E ela chama-lhe pai, que
eu já ouvi.
É logo censurado por um circunstante, em termos ásperos:
– Está calado, palerma! Só dizes palermices!
– RraaAAHH! – urra alguém de dentro da floresta alta. – Cá está!!... SNIF! SNIF! Descobri a pista
dele!!
– Até que enfim! Há meia hora que andas a foçar no chão! –
responde uma segunda voz, igualmente agreste.
– Como é que queres que eu descubra a pista de um cabrão de
címbalo, sem ser pelo cheiro?
Entretanto, o caracol que quase foi pisado por Kli sai da
proteção das ervas para o caminho. «Levantou-se a névoa», considera ele. «Já
posso retomar as minhas voltas!...».
Infelizmente, é logo tragado por um beiço barbado e voraz:
– Rrraah! SNIF!
SNIF!... SLURP!
E na floresta ouve-se um comentário disparado com
agressividade e satisfação:
– Além de que no chão há sempre coisas apetitosas para
comer!...
[CONTINUA]
[1]
Segundo o cronista Plínio, o Velho, é necessário distinguir os cimbalinos “mansos” dos “bravos”. Os “mansos” (como Kli Van-Kli) convivem com os homens normais, embora habitualmente pouco; são
quase imberbes e alguns, raros (como Apolinário), adaptam-se até a viver em
aldeias. Já os “cimbalinos bravos” ou
“selvagens” são mais peludos,
agressivos e imprevisíveis; entendem-se com os lobos e outras criaturas
bravias, e evitam a civilização, onde têm muito má fama.
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