Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
No torreão, o Príncipe aproximou-se de Javardo e ordena-lhe em surdina:
– Envia uns homens à procura daquele címbalo. Quero-o aos
pés da minha cama, amanhã, quando acordar.
Javardo grunhe de prazer, em assentimento.
– Um cimbalino não poderia servir, para a leitura dos
presságios? – pergunta o Príncipe aos bruxos, depois de o seu lugar-tenente se
ter retirado.
– Bem... talvez – responde um deles, surpreendido. – Mas os
cimbalinos têm vísceras estranhas, difíceis de interpretar.
– Pois parece que tereis que vos haver com isso!
Carcavel regressa à janela e olha para fora. Resmunga:
– Já esta manhã saímos para caçar no meio do nevoeiro!
Corremos perigo de vida, tivemos enormes trabalhos, tudo isso porque vossas
excelências precisavam de um javali!...
– Que quereis, Senhor, não somos nós mas os ritos que têm as
suas exigências!...
– Mudai os ritos! – brame o Príncipe, de dentro da sua
torre. E, à guisa de argumentação final, acrescenta: – Os javalis rareiam nesta
época!
De madrugada, Samara dorme intranquila. Por um instante, o
luar velado que penetra pela janela entreaberta é escurecido por um ser voador
que a atravessa. É um vampiro, criatura raramente vista em Valmaior desde a
funesta nuvem negra que cobriu o céu em tempos remotos e quase inteiramente
esquecidos. Depois de descrever um círculo, percorrendo o aposento, o arrepiante
bicho baixa sobre a mesa-de-cabeceira, onde, ao lado de uma figura de Ártemis em
madeira, brilha o anel de prata de Samara. Vira o horrendo focinho para a
rapariga, parecendo estudar o seu rosto com intentos malignos. Arrasta-se na
sua direção, com uma espécie de gemido quase inaudível, mas interrompe-se
subitamente, alerta. Acaba de detetar Kli, que, tomado de um estranho
pressentimento, despertou com um calafrio no mesmo instante em que o morcego
entrou no quarto de Samara, subiu a escada e agora, de faca na mão, se aproxima
da porta. A vil criatura arreganha os dentes afiados, retrocede
desajeitadamente, apodera-se do anel com as garras e levanta voo. Contudo, com
a precipitação, deixa cair o anel, que rola para baixo da cama. Samara murmura,
como se sujeita a um pesadelo, mas não acorda com o ligeiro ruído porque um
bizarro torpor a domina… e o vampiro sai pela janela um átimo antes de Kli
abrir a porta.
O cimbalino observa o aposento, onde Samara ainda dorme. A
rapariga remexe-se na cama, vira-se para o outro lado e balbucia num sussurro.
Com inesperada ternura por ela, Kli fita o seu cabelo espraiado, a forma do
ombro que desponta e o volume do corpo sob as cobertas. Nada de extraordinário
vê no quarto mas, com novo calafrio, sente instintivamente que algo funesto ali
esteve e fugiu.
Não suspeita que um dia, não muito afastado, enfrentará numa
caverna a tenebrosa Mãe desse algo.
[CONTINUA]
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