Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Kli entra numa loja, obscurecida não só pelo fim de dia como
pelo facto de haver uma única janela aberta, que dá para o pátio nas traseiras
da casa. Há ali uma profusão de coisas, de frascos, potes, caixas, folhas de
chá e pés de alho pendurados por trás do balcão, velas das mais diversas cores,
expostas em embalagens de madeira forradas de pano, e objectos de finalidade
indeterminada. Reina no ar um cheiro a incenso, impregnado em tudo aquilo.
– O meu pai não está!... – diz a miúda, com alguma timidez,
devida porventura à invasão da sua privacidade. Kli repara que a túnica
vermelha que ela usa lhe fica efectivamente curta e apertada.
– Eu sei – responde o cimbalino. – Tenciono justamente
descobrir o que é feito dele. E gostaria que me ajudasses!
Ela mira-o, abrindo os olhos de admiração.
– Vi-te bater naquele estúpido, à tarde. Ele mereceu-o, foi
bem feito!
Samara dirige-se à porta que comunica com o resto da casa,
num gesto implícito para que Kli a siga. Parece ter varrido a timidez quando
diz:
– Mas o meu pai não costuma ter amigos assim tão
valentes!... – E, a seguir, completa: – Eu gosto!...
Desta vez, é Kli que enrubesce.
Caiu a noite. A lua em crescente, frequentemente obnubilada,
vai ainda alta no céu. No torreão de Lascário Carcavel, imersos numa atmosfera
bruxuleante, os bruxos conversam com o Príncipe.
– A hora aproxima-se, Senhor – anuncia um deles. – Antes de
mais, devemos dizer-vos que não restam dúvidas: sois vós o Príncipe do Salmo!
Carcavel não pode conter um enviesado sorriso de prazer. Um
outro mago confidencia-lhe:
– Efetivamente, os sinais são inequívocos: o Príncipe do Salmo vive dentro destes
muros.
Em silêncio, Lascário Carcavel vai até à janela, de onde
contempla Valmaior e a aldeia onde só despontam raros lumes. O seu olhar
prende-se na curva em que o vale se desdobra, ao longe, no cabeço alcantilado que
esconde a Porta do Tormento Amarelo.
– Pois então despachemo-nos! – exclama ele. – Tenho ânsias
de ver a minha noiva e conquistar o que o Salmo me promete!
No piso inferior, a cerca de um metro da janela, Dária,
envolta numa pele de urso sobre um longo vestido, fita o negrume da noite, com
os seus olhos de ónix, escuros e brilhantes. A sua mente evoca um sonho, um
desejo ou uma alucinação: nua, com o seu corpo de sadia camponesa coberto
apenas por uma grande pele de lobo esvoaçante, ela, contra a floresta negra,
caminha sobre a neve rodeada de lobos; com a mão direita acaricia a cabeça de
um deles, com a esquerda a própria barriga.
E recorda aquele final de tarde em que, numa câmara mal
iluminada por um archote, teria ela uns 5 ou 6 anos, uma bruxa vaticinou
pondo-lhe uma marca de azeite na testa:
– Tu, Dária, minha criança, serás um dia a Senhora dos Lobos
e com eles mostrarás a tua força.
No largo aposento acima, um dos magos assinala a Carcavel:
– Osthsam-Osth!...
Não podemos apressar o tempo, Senhor.
– Vós podeis! – retruca o Príncipe com
um brilho ameaçador no olhar. – Ou não tendes feito bem os vossos trabalhos?
– Sabeis bem que sim. Mas, esta noite ainda, devemos rezar
aos deuses.
O Príncipe pensa em Kli e na afronta que sofreu; e diz:
– Se precisardes de uma vítima para sacrificar, talvez tenha
um candidato.
– Um javali seria
bom... para a leitura das entranhas!...
Ao fundo do salão, junto à porta mal iluminada, Javardo
contorce a cara com raiva. Depois tem um susto quando ouve chamar:
– Javardo!
A velha das galinhas, na cama, soergue-se para repetir o chamamento:
– Javardo! O Príncipe!...
Carcavel diz ao seu lugar-tenente, quando este se aproxima e
para a uma distância estranhamente grande:
– Javardo, ainda não há notícias do Esturjão?
– Não, Senhor! Ainda não voltou. Deve ter-se entretido com
uma galdéria qualquer… Mas o tal címbalo não deve estar na aldeia, ou ele já o
teria denunciado.
Nas colinas, entre as cabras e tiritando de frio, o referido
Esturjão, o servo do Príncipe sovado por Kli, pensa nos maus tratos que
receberá se se apresentar na fortaleza após o seu fracasso:
– O Javardo degola-me! Bate-me! Morde-me!
Franze o sobrolho, entre raivoso e infeliz, ali sentado e
encolhido.
– Maldito címbalo!... Para onde hei de ir agora? Suíça?
América do Sul?
– América do Sul?! –
admira-se um bode, ao seu lado.
– Cala-te, cabrão! – exclama o homem, refugiado na
imensidão agreste das colinas.
[CONTINUA]
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