Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Os bruxos, no torreão de Carcavel, parecem também tomar o pequeno almoço. Cavaqueiam sobre trivialidades.
– Ouviram as notícias, colegas? Um terrível incêndio lavra
na Herdade dos Suplícios!
– É terrível, colega! Terrível!...
– Foi algum imbecil que se esqueceu de cuidar do fogo!
Rezingam durante um momento e depois um deles oferece aos
restantes:
– Caviar, colegas?
– Obrigado. – agradece um dos outros, estendendo um
pratinho.
– Com moderação – aconselha o terceiro, aceitando também a
oferta. – Caviar é funesto para o fígado.
– Achas? – pergunta o primeiro.
Passado um bocado, o terceiro bruxo comenta, olhando para o
lado, aparentemente confuso, para um corpo dissecado sobre uma mesa:
– Que estranho indivíduo!...
Na estalagem, encostado ao balcão, Kli conversa com Asdrúbal
Moutinho, ocupado do outro lado a limpar canecas. O seu filho de 7 anos,
Amílcar, ajuda-o enquanto cantarola uma toada infantil. De lá de dentro, da
cozinha, chega a voz melodiosa de Elissa, que parece dar réplica ao miúdo. Ao
fundo do salão, a clientela observa-os com a orelha atenta.
– Sim, é verdade, havia ali vestígios de luta – confirma
Moutinho. – Parece que o Apolinário se debateu!
– Portanto, não há dúvida que alguém raptou o
infeliz. Os druidas ou o Lascário.
– O Aplinário lutou com monstros e fantasmas romanos!
– assegura Amílcar.
– Sabes, essa hipótese do Lascário...
O estalajadeiro é interrompido pela entrada abrupta de
Samara.
– Asdrúbal, onde está o burro do meu pai? Eu vou com ele
passar a Porta do Tormento Amarelo!
Asdrúbal olha-a interdito. Passado o momento de estupefação,
pergunta-lhe:
– O burro?...
Samara, endoideceste de vez?! Queres sujeitar-te a sofrer o Tormento?
– Qual Tormento? Isso são histórias da carochinha!
«Carochinha?!», pensa Kli, perplexo, olhando para
ela. Amílcar pede ao pai que lhe conte uma dessas histórias mas Asdrúbal
Moutinho endireita-se, enchendo-se de brios e diz:
– Menina, mais respeito! Eu sei, por ter ouvido da boca do
meu próprio avô, de um rapaz da sua época (estouvado como tu) que deu em
atravessar a Porta. Pois bem: não
conseguiu! E o Tormento Amarelo perseguiu-o
durante toda a sua vida... que não foi longa!...
A miúda parece acalmar, enquanto a clientela se mantém a uma
distância não comprometedora, observando-a e a Kli em tom crítico; afinal não
acolheu ela aquele vadio cimbalino para lá passar a noite… sozinho com ela?!...
Passada a tempestade, o estalajadeiro, numa voz de
conciliação, argumenta:
– Vá, não sejas estouvada!... O desaparecimento do teu pai
tem-te deixado perturbada, eu sei!...
Mas ela tem novo ataque de irritação:
– Mas então um de nós desaparece e vocês ficam aqui sem
fazer nada?!
– Não é bem um de nós... – diz Moutinho sem pensar.
Arrepende-se demasiado tarde.
Samara responde-lhe, friamente:
– Pois não. Bem sei. É um cimbalino. Como eu!
Kli enerva-se. Lança ele a Moutinho:
– O quê?! Pois um
cimbalino não é gente? Não conta?! Meu amigo, antes de vocês chegarem, já nós
cá andávamos há muito tempo! Que sabem vocês dos deuses voadores ou do reino
submergido da Atlântida?
– Pronto, pronto!... – defende-se Moutinho, ao lado de um
atónito Amílcar. – Peço desculpa, não queria dizer o que disse!...
– Mas ela não é uma cimbalina!... – diz uma mulher admirada,
ao fundo.
– Que sabes tu disso? – lança-lhe o estalajadeiro com tal
veemência que a mulher se cala e engole em seco. Depois, vira-se para a
rapariga, amuada: – Samara, sabes bem que o teu pai me acudiu várias vezes, e à
minha família, e que até já me salvou da morte. Tenho por ele a mais elevada
estima.
A miúda assenta uma mão no balcão, desafiando-o:
– Pois, então, vem comigo!
Asdrúbal Moutinho fica calado, remoendo e estreitando os
olhos. Ela vira-se e olha em torno, para a assistência.
– Venham todos comigo! – incita. –
Vamos passar aquela Porta e mostrar
que o Tormento não passa de uma
lenda!
O constrangimento geral é notório. Mas, enfim, um dos
presentes, cheio de brio, exclama:
– Ela tem razão! Seremos tão poltrões que deixaremos um amigo sem assistência?
Surpreendentemente, um brado de exultação acolhe estas
palavras.
– Vamos à procura dele! – entusiasma-se o homem de brio.
– Ir à procura... já fomos!... – comenta um, mais moderado.
– Atravessar a Porta?
– inquire outro, a medo.
– Talvez amanhã!... – sugere um quarto.
– Sim, sim, talvez!... – diz um quinto, enquanto pega no
chapéu e se retira. – Passem bem, tenho a horta para cuidar!...
E assim vão todos saindo...
– Eu tenho o trabalho já atrasado!
– É preciso arar o campo!...
– A minha mulher espera os ovos de gansa!
O homem de brio fica por último; diz ele: – Vamos pensar
nisso. É a única proposta decente. – E retira-se também, sem olhar para trás: –
Sim, vamos pensar nisso!...
O estalajadeiro limpa o balcão. Kli, com algum descrédito,
comenta:
– São estes os valorosos Lusitanos, que tantas vezes sovaram
os Romanos?
Moutinho resmunga, elevando o sobrolho. Firme e orgulhoso,
diz à miúda:
– Samara, eu não vou contigo. E aconselho-te, a ti própria,
a não ires. Eu sei que não é possível atravessar a Porta. E não ganhamos nada em ficar com o Tormento colado à pele e à alma.
Kli, contra o que é hábito, já está enervadíssimo.
– A Samara tem razão: vocês são todos uns cobardes! Pois eu
vou com ela!
A rapariga olha para ele. Um sorriso lindíssimo abre-se-lhe
no rosto pela primeira vez. Exclama, com os olhos ansiosos muito abertos:
– Vais?!... Vais
mesmo?
– Ora essa! Vou! Um
cimbalino nunca volta com a palavra atrás! Embora não seja um de nós!... – completa, fitando ironicamente o estalajadeiro.
[CONTINUA]
Sem comentários:
Enviar um comentário