Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Kli e Samara, sentados frente a frente na grande mesa que
ocupa o centro da cozinha, tomam chá. Sobre a mesa, iluminada pela grande
janela que dá para o jardim, há pão, queijo, bolachas, biscoitos e fruta. Ela
está de costas para as prateleiras que se encostam à parede e sobre a qual,
como na loja, há grande variedade de coisas: boiões, frascos, caixas, frutas,
ervas, lucernas, etc. Kli repara que a arquitetura do compartimento (aliás, da
casa toda) é característica dos cimbalinos que se acomodam a habitações: com
linhas arredondadas em esquinas e cantos.
– Desculpa-me!... Fui tão parva! – diz ela, contrita. – O
estúpido do Apuleio é que tem razão.
– Não digas isso, Samara. Deverias ser menos exaltada,
talvez – contrapõe Kli. – Mas, mesmo exaltada, és bonita.
– Não brinques comigo – protesta ela com um sorriso
constrangido. Mira o anel na mão aberta e comenta: – Devo ter batido nele,
durante a noite, atirando-o ao chão. – Abana ligeiramente a cabeça, não muito
convencida. E, passado um momento, fita Kli e inquire, ruborizada: – Mas,
afinal, o que foste fazer ao meu quarto?
– Não fui ao teu quarto, Samara. Na verdade, não passei da
porta. Fui lá porque… é difícil explicar… acordei sobressaltado, com a nítida intuição
de que alguma criatura, alguma coisa,
tinha entrado no teu quarto e te ameaçava.
Samara estremece. Kli prossegue:
– Uma força imperiosa levou-me a ir lá. Imediatamente! Subi
a escada e creio ter ouvido um tilintar e um som estranho, talvez de asas,
pouco antes de abrir a porta. Quando o fiz, nada vi de extraordinário. Mas senti!... Tenho quase a certeza de que
alguma criatura ali tinha estado.
Ela estremece de novo e abraça-se.
– Estás a assustar-me…
– Talvez fosse apenas uma ave!... Mas creio que tentou
roubar-te o anel.
– OH! Uma gralha ladra? Já ouvi falar nelas.
– Talvez. Mas talvez convenha não te separares mais do anel.
– Nunca mais! É um anel mágico, disse-me o meu pai, e é muito
importante para mim. Tenho-o desde que me lembro.
Samara observa mais uma vez o belo anel.
– É tão bonito!
– Passaste bem a noite? – pergunta Kli, sondando-a. Um eco
do estranho pressentimento que o fez acorrer ao quarto dela provoca-lhe um
aperto no coração.
– Com algum frio, porque estava sozinha – responde ela, com
picardia talvez excessiva. – Não ligues, estou a armar em parva outra vez!...
Para ver se não me enervo demais! Ou, se calhar, tive mesmo frio!... Às vezes,
sinto-me tão sozinha, tão longe…
O cimbalino bebe um pouco de chá, escamoteando o
desassossego e tentando avaliar a bela adolescente que tem à sua frente... e se
é ou não verdade que começa a sentir desejo por ela!... Fita-lhe os olhos
baixos, revê-a nua à janela e dificilmente consegue remover essa imagem do
pensamento.
– Ora bem... nasceu mais um dia, e o teu pai sem
aparecer!... – comenta ele, adormecendo a inquietação.
Franzindo a fronte, a rapariga murmura um seco “Hm!” como resposta.
– O que achas que lhe aconteceu?
Ela levanta-se decididamente, para ir buscar chá ao fogão de
lenha, enquanto diz:
– Não sei. Mas vou averiguar hoje mesmo!
Kli olha para ela.
– Estás a falar a sério?... Ouvi dizer que ninguém passa a Porta do Tormento Amarelo!...
– É o que dizem – responde ela, de costas junto ao fogão.
Samara retoma o seu lugar à mesa, segurando a
chávena com ambas as mãos. Kli inclina-se para a frente sobre a mesa, olhando-a
nos olhos, como numa conversa sigilosa.
– Ninguém o tentou, até hoje? – pergunta ele. – E ninguém
tentou realmente encontrar o teu pai?
– Não! – exclama ela. – Bando de cobardes! Limitaram-se a ir
olhar para a Porta e recolher um sapato perdido!
Ela resmunga algo, enquanto trinca um biscoito.
– Disseram que havia ali vestígios de luta – diz, passado um
bocado, mais calma. – E é verdade, eu própria os vi.
– Vestígios de luta?! – espanta-se o cimbalino. Acabando o
desjejum, levanta-se. – Quero tirar isso a limpo! Vou falar com o Asdrúbal.
[CONTINUA]
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