Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
– É um homem mau, o Lascário Carcavel!... – diz Lúcio, à
guisa de introdução. – Não obstante ser descendente de uma ilustre e excelente
família.
– Detesta cimbalinos – comenta um dos clientes em pé.
– Consta que tem alguns como escravos.
– Como escravos? –
reage Kli, com uma expressão de repulsa.
– É verdade – confirma o estalajadeiro. – Por isso, não te
tomámos por espião dele.
– Diz-se que ele tem duzentas escravas para o servir!... –
repete alguém, com ar algo sonhador.
– Não se trata mal – pondera outro, com um copo na mão.
– Sim, Lascário Carcavel é um homem lascivo!... – concorda
Lúcio Simplex.
Asdrúbal Moutinho torna a sentar-se à mesa, ao lado dele.
– A verdade – diz Lúcio, com ar de segredo – é que o
Lascário cobiça a Samara... a filha do
Apolinário!... Todos sabem disso... menos, provavelmente, ela própria e o pai.
– Padrasto.
– Tio!
– Irmão!
Moutinho recosta-se, e diz, como se falasse com os seus
botões:
– Seja como for, a verdade é que a pequena Samara cresceu
muito, ultimamente. Já não é bem uma miúda. E a roupa já lhe fica curtinha e
apertada! Apolinário deveria dar mais atenção a isso. Mas tem os olhos sempre
postos na lua!.. Ou na terra, à procura de ervas!...
Faz-se silêncio, porque esse é um assunto melindroso. Ninguém repara que Aderbal está vermelho como um tomate. Finalmente, Kli aventa:
Faz-se silêncio, porque esse é um assunto melindroso. Ninguém repara que Aderbal está vermelho como um tomate. Finalmente, Kli aventa:
– Mas se esse Lascário é assim tão lascário... quero dizer,
tão mau… e deseja a menina, não poderia ele ter raptado o Apolinário?
Passado um momento de espanto geral com essa hipótese, o
estalajadeiro pergunta, com as bastas sobrancelhas arqueadas:
– Para quê?!
– Sei lá! – replica o cimbalino. – Como uma espécie de
refém!... Para o obrigar a ‘dar-lhe a mão’ da menina, como vocês dizem!
– Dar-lhe a mão?! – pergunta um, arreganhando a dentuça. –
Não é bem isso que ele quer!...
– Hi, Hi! He, He!
– grunhem outros dois, sem conseguir conter um risinho cínico.
– Kli – retoma Lúcio, paternalmente –, o Príncipe, se bem o
conhecemos, não quer a Samara para legítima mulher. Não, nesse capítulo, ele
guarda-se para mais altos voos.
– A Samara, ele quere-a para amante às suas ordens. Na palha
da estrebaria mesmo, deverá servir – resume o estalajadeiro com rude franqueza.
– Livra! – exclama o puto filho dele. Fica ainda mais encarnado
e franze o sobrolho.
– Estou a ver que tenho que lhe acertar umas pauladas –
resmunga Kli, revoltado.
Lúcio inclina-se para Kli e diz a meia voz, semicerrando os
olhos:
– Lascário Carcavel pensa que é o Príncipe do Salmo!
Kli fita-o, intrigado.
– O Príncipe do Salmo?! Que Salmo?
– O Salmo de Hipericão – explica Lúcio.
E então faz-se silêncio, enquanto ele recita:
Diz a tradição que aquele que passar
a
Porta do Tormento Amarelo e libertar
a princesa
do seu transe para a real existência
será um príncipe de grandes méritos,
honras e riquezas.
Com um gesto fabuloso e inédito,
ao Mundo nova era anunciará.
Da penetração surgirá a luz,
da extração um novo reino!
– Da penetração?!... –
pergunta Kli, ainda mais intrigado.
– He, He! Hi, Hi!
– repetem-se os risinhos de há bocado.
– Sim – responde simplesmente Lúcio Simplex. – Esta última
parte (que não é realmente a última)
parece excitar grandemente o Príncipe!... E não só! – completa, olhando em
redor.
– Mas que princesa é essa? – quer saber Kli.
– Ninguém sabe – diz o estalajadeiro, levantando-se e
pegando no pano para limpar a mesa, pois o seu cliente já acabou de comer. –
Isso é uma lenda antiga. Se calhar, não passa de cantilena!...
– Em qualquer caso – assegura Lúcio –, vaidoso como é, Carcavel pensa que é ele
o Príncipe em causa.
Kli medita um pouco e depois pergunta:
– Então, porque é que não atravessa a tal Porta?
– Porque tem medo – diz Asdrúbal Moutinho,
novamente arqueando as sobrancelhas. – Já te dissemos, não se passa a Porta assim sem mais nem menos!...
Dito isto, ele faz novamente ares de mistério:
– Mas parece que o Príncipe prepara uma expedição em peso
para invadir Valmenor. Consta por aí que mandou chamar bruxos poderosos para
quebrar o encantamento da Porta!
No torreão do Príncipe, os bruxos, no meio do fumo, entoam
cânticos cerimoniais mágicos.
Em baixo, à porta traseira do torreão, a velha que depenava
a galinha, torce já o pescoço a outra. “KAA!”
– faz a galinha, num estertor. Então, a velha detém-se, inclinando a cabeça
para ouvir melhor a melopeia que lhe chega do alto; diz ela:
– Bonita canção!...
[CONTINUA]
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