Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Na casa de Apolinário, entretanto, Kli e Samara ultimam os
preparativos, arrumando algumas bagagens junto à mesa da cozinha.
– Sabes, Samara, quando vinha para cá pareceu-me vislumbrar
duas silhuetas a vigiar-me, lá da ponte para o templo.
– Ah, sim? – Ela detém-se, olhando para ele. – Talvez os
dois passarões do Príncipe que ficaram derrubados junto à Árvore Grande!...
– Não. Esses desapareceram antes de acabarmos o almoço. “Escafederam-se”, disse o Apuleio. – Kli
pega no seu bastão, encurtado. – Não devem voltar tão cedo. Ah, se apanho
aquele gordo!...
– Enfias-lhe o resto do teu cajado pelo cu acima? – diz ela
com um brilho de malícia no olhar.
– Samara! Isso não são modos para uma menina!...
– Ora, ora, ora!... Não sou uma menina, já tenho... 15
anos!...
Nesse momento, batem à porta vigorosamente. Com um
sobressalto, Kli e Samara entreolham-se.
– Quem será? – pergunta Kli.
Ela encolhe os ombros, como quem diz “sei lá!”, mas sugere: – Os teus dois espiões?
Ele sai da cozinha, atravessa silenciosamente a loja e,
chegado ao pé da porta, pergunta, franzindo o sobrolho:
– Quem é? Estamos fechados!
Lá fora, o visitante ri-se.
– Já montaste negócio, Kli? Vá, abre a porta, sou eu, o
Asdrúbal!
O estalajadeiro ouve o trinco correr. A porta entreabre-se e
surge Kli, um pouco perplexo:
– Asdrúbal? O que
queres? Nós pagamos-te o burro amanhã... – Só então, espantado, repara no
machado ao ombro do homem. – Para que é esse machado?!
– Para arrombar a porta, se não me deixares entrar! Vai
ficando frio aqui fora!...
O colosso entra. Enquanto atravessam a loja, Kli fala-lhe
dos vultos que vislumbrara na ponte.
– Não dei por ninguém – responde Asdrúbal, com o seu
característico arquear de sobrancelhas. – Talvez fosse o Apuleio e algum
outro...
Quando entram na cozinha, deparam com Samara no meio de
tralha diversa, imóvel com os braços cruzados.
– Então, Asdrúbal – zomba ela –, para que é esse machado tão
grande? Tornaste-te homem e decidiste vir connosco?
Ele, com o machado ao ombro, ignora a provocação.
– A minha imprudência não chega tão longe, Samara. Em
especial, e tu deves sabê-lo, pela minha família. Mas vocês precisam de proteção...
não só por causa dos Druidas, como também do Príncipe.
Nunca se sabe o que esperar desse canalha!... Sobretudo, depois da rixa de hoje
à tarde.
O homem desvia o olhar da rapariga para algum objeto à sua
esquerda.
– Assim... bem... pelo menos esta noite, aqui na aldeia, eu
posso protegê-los! Fico aqui.
Dito isto, senta-se num cadeirão, junto à braseira, com o
machado sobre os joelhos.
– Terão que passar-me por cima, para chegar até vós.
Lá fora, as duas silhuetas barbudas, atrás da árvore,
debatem:
– Entrou aquele brutamontes na casa. Quanto tempo irá lá
ficar?
– Ele levava um machado. Achas que os foi esquartejar?
– Não me parece, irmão – pondera o primeiro. – Não ouvimos
nenhum berro!...
Durante um instante, mantêm-se em silêncio. Um gato roça-se
na perna de um deles, assustando-o.
– Fora daqui, gato miserável! – ralha-lhe o homem entre
dentes, agitando a perna. Mas outros gatos aparecem.
– Estultos! – diz
uma voz, vinda dos lados da ponte.
Eles têm um sobressalto, clamando: – O quê? Quem está aí?
E nisto, virando-se, pisa cada um o rabo de um gato,
enquanto a voz prossegue: – Néscios!
Imbecis! Parlapatões insensatos!
O que se segue é um festival de miados, rosnados, arranhões
e gritos. Na casa de Apolinário, Kli, que já se tinha deitado, enrolado na sua
manta ao lado das bagagens, soergue-se:
– Que balbúrdia é esta?
– São os gatos à bulha, Kli – responde o estalajadeiro do
seu cadeirão. – Não te preocupes.
O cimbalino deita-se novamente. Mas não pode impedir-se de
pensar:
«Gatos não dão gritos!...»
[CONTINUA]
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