BANDA DESENHADA, HISTÓRIAS E ILUSTRAÇÃO / BANDE DESSINÉE, HISTOIRES ET ILLUSTRATION / COMICS, STORIES AND ILLUSTRATIONS
segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Kallilea (8)
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quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Kallilea (7)
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terça-feira, 24 de julho de 2012
Still out of focus
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quarta-feira, 11 de julho de 2012
A estranha virilidade do Escudeiro Europa
“O Escudeiro Europa”, ilustração (c) 2007 Luís
Diferr
Aqui está mais uma personagem virtual do mutante e fractal mundo criado por José de Matos-Cruz, tão virilmente representada em “O Infante Portugal e as Tramóias Capitais” (2010, Apenas Livros, Lda).
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terça-feira, 10 de julho de 2012
O desdobramento do Infante Portugal
“O Infante Portugal”, ilustração (c) 2011 Luís Diferr
[Original a tinta da china,
digitalmente editado em Photoshop]
O Infante Portugal, congeminado pelo lírico José de
Matos-Cruz, desdobra-se literalmente sob o traço de diversos ilustradores no
livro “O Infante Portugal e as Sombras
Mutantes”, publicado no passado mês de maio. O mais prolífico de todos eles
é Daniel Maia.
“Deste solo emergirão o barro e a carne. O sopro e o sangue. A forma e a
essência. O nervo e a voz. O desejo e a consciência. O homem e os seus fantasmas.
Desta forja brotarão o fogo e o furor. A fórmula e a matriz. A matéria e
a centelha. A mutação e a engrenagem. O ritual e a alienação. O herói e as suas
máscaras.”
In “O Infante Portugal e as Sombras Mutantes”, página 53, (c) 2012
José de Matos-Cruz
O mirabolante autor presta tributo a todos os seus cúmplices
rabiscadores numa mostra hoje inaugurada, conforme o convite abaixo reproduzido.
Talvez lá se descubra o próprio Infante. Certo é que encontrá-lo
será um feito quase tão notável quanto a descoberta do evanescente bosão de Higgs!
LER NOTÍCIA AQUI: Pérola de Cultura;
ou AQUI: João Amaral;
ou ainda, com vários
desdobramentos mutantes, AQUI: Daniel Maia e Susana Resende.
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quarta-feira, 4 de julho de 2012
Os Druidas de Valmenor (34)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Ao alvorecer, Asdrúbal Moutinho vai buscar o burro
prometido. Mas, em vez de um, traz três. Com o zurrar de um deles, um dos
espiões da véspera acorda estremunhado.
– O quê? – resmunga ele, contrariado.
Estão agora refugiados por detrás de um muro de pedra, não muito alto, que
beira o caminho para a floresta à saída da aldeia, do lado da estalagem. O
vulto põe-se em pé e olha para a casa de Apolinário. Mas de imediato se esconde
atrás do muro, dizendo “Merda!” e
abanando o companheiro. – Irmão, acorda!
– Vai-te lixar! Ainda é cedo! – reclama este último,
enrolado numa manta puída.
O barbudo em pé, semi-encurvado, observa Moutinho, Kli e
Samara que, à porta de casa e junto a algumas provisões, conversam em voz
baixa, inaudível para ele.
– Aqui estão os burros – diz Moutinho. – Este é o do teu
pai, Samara: o Cipreste. Este é o que
te aluguei, Kli. E este é o Gaffe,
que decidi emprestar-vos... para carregar as provisões.
O estalajadeiro parece preocupado: – Hm!
– O que se passa? – pergunta Kli.
– Cheguem aqui – sussurra o homem, levando-os quase até ao
meio da rua. Dali aponta-lhes a fortaleza do Príncipe, de onde sobe uma coluna
de fumo violeta. – Parece-me que se prepara algo insólito no bastião do
Lascário!... Vêm a cor estranha daquele fumo? Hm! E de madrugada,
quando vim cá fora apanhar ar, chegaram-me sons de gritos e estrépitos
metálicos.
Com gesto firme, ele conduz os viajantes novamente para o pé
dos burros e das provisões, à porta de casa. Diz ele:
– Com três burros, vocês vão mais depressa.
Do seu posto de vigia, o barbudo dá um pontapé no
companheiro deitado.
– Vais levantar-te ou não?! – insta, exasperado.
– Irra! – resmunga o outro, entreabrindo um olho. – Nem o
sol ainda se deu a esse trabalho!
O primeiro retoma a vigia nervosa. Vê Samara já montada no
burro do pai e Kli preparar-se para montar naquele que alugara. Moutinho acaba
de prender as provisões maiores ao terceiro animal.
– Eles vão partir! – rosna o barbudo, excitado. E desfere
mais um urgente pontapé no outro. – Levanta-te, estúpido!!
Mas aquele limita-se a roncar em alto e bom som.
– Que barulho é este? – pergunta Kli, alerta, com o bastão
numa das mãos, olhando para o muro que esconde os barbudos. – Parece alguém a
ressonar!
– Deve ser o Apuleio. Ele dorme em qualquer sítio!... –
considera Moutinho. Fita a rapariga e diz-lhe: – Rogo aos deuses que encontres
o teu pai, Samara. – E, após uma pausa, despede-se, pondo a mão na garupa de
Cipreste: – Boa sorte. Apesar de tudo, algo me diz que conseguirão.
Já eles se afastam, quando o homem acrescenta:
– Kli, lembra-te da minha recomendação quanto ao burro...
aos burros, quero dizer!
Quando cruzam a grande árvore, o barbudo em pé dobra-se para
não ser visto e dá novo pontapé no outro.
– Acorda, estupor! E para com esse ronco!
Do outro lado da ponte, pelo hemiciclo do templo, chega
Lúcio Simplex do seu passeio matinal; com um gesto da mão direita, sem dizer
uma palavra que perturbe a alvorada, despede-se dos aventureiros.
E assim saem eles da aldeia, o cimbalino e a rapariga, com o
burro das provisões atrás. Narrando este momento, virá Lúcio Simplex a
escrever:
“Seguiram os cavaleiros nas suas soberbas montadas, com as quais constituíam um só. A que perigos se dirigiam, não seria possível sabê-lo. Nem se sobreviveriam. Mas muita coragem é necessária para defrontar a Porta!”
Do seu esconderijo, o barbudo avista-os afastarem-se em direção
à floresta e Lúcio encaminhar-se para a estalagem. Com as ferozes sobrancelhas
franzidas, rosna:
– Se aqueles dois pensam ter uma viagem tranquila,
enganam-se. Ninguém nos desafia à toa! – Faz um gargarejo sinistro e completa:
– Hoje será o seu último dia!
Do céu, uma ave madrugadora vê-o desferir vigoroso pontapé
no colega deitado.
– Acorda!
– Ronf!
[FIM DA 1ª PARTE]
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terça-feira, 3 de julho de 2012
Os Druidas de Valmenor (33)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
A lua, novamente alta no céu noturno, brilha agora sobre esparsas e velozes nuvens. Na fortaleza do Príncipe, apesar da hora tardia, há grande azáfama. No pátio, Javardo grita ordens:
– Tragam as alimárias para aqui! Cuidado com esse burro!
Aventesma de merda, não vês que estás a raspar esse escudo no chão?!
No topo do torreão, os magos, acompanhados por Carcavel,
parecem incomodados pela gritaria que chega através da janela:
– Grandessíssimo estúpido! Carrega-me essa tralha como deve
ser! Abram alas para o alazão!
– Senhor – dirige-se um dos magos ao Príncipe –, não podeis
pôr termo a isto? É impossível trabalhar assim!
– Põe-nos os nervos em franja!... – queixa-se outro.
O Príncipe vai à janela e chama, com impaciência:
– Javardo!
O interpelado olha para ele, dizendo logo:
– Senhor?! Tudo vai bem!
– Não, não vai – responde-lhe o Príncipe. – Vê lá se fazes
menos barulho! Os magos precisam de se concentrar!
O Príncipe recolhe-se, enquanto Javardo, olhando o torreão
de soslaio, com o cenho franzido, resmunga:
– Bruxos de má sorte! Maricas! Ainda vos faço engolir a barba!
Lá em cima, um dos visados confidencia a Carcavel:
– O vosso lugar-tenente tem-nos malquerença.
– Aquele vosso servo é uma fonte de perturbação – considera
outro.
– Melhor seria – pondera o terceiro – se fosse fonte de
informações... lendo-lhe nós as entranhas!...
O Príncipe tem um gesto de irritação e reclama:
– Não pensem nisso! Eu e o Javardo crescemos juntos, temos
uma relação de afecto e compreensão. E agora chega! Não precisam de ler-lhe as
entranhas para me dizer os augúrios... que, espero, sejam bons – acrescenta com
uma ameaça na voz. – Para isso já lhes dei um Esturjão.
Os três magos tossem em simultâneo. Um deles, com certo
receio, toma da palavra:
– Senhor! Podemos dizer-vos: amanhã é a hora de
avançar! Os sinais são claros. Mas...
– Mas o quê? – rosna o Príncipe. – Haverá azar? Não irei eu
reunir-me à princesa e acordá-la?
Após mais um tossicar geral, os magos retomam a compostura.
– Desculpai, Príncipe. É do fumo!...
– A verdade é que há indícios de algumas complicações –
esclarece um deles. – Será necessária a maior prudência!...
– Triplo asno! – ouvem Javardo urrar.
– Címbalo de merda! Para castigo, irás connosco!
O alvo das injúrias é um jovem servo cimbalino, de
compleição orgulhosa, que deixara escapar um burro que agora anda a escoicear
pelo pátio.
– És mais asno que aquele! – esbraveja Javardo. – Os Druidas
que te apanhem e façam picado de ti!
No salão dos bruxos, todos ficaram suspensos com aquela
interrupção.
– Calou-se – diz um deles, enfim.
– Sabeis ainda, Senhor – acrescenta outro, para Carcavel,
usando de todo o tacto de que é capaz –, que o resto do Salmo diz claramente que o destino separará a princesa do seu
libertador.
– Bah! Desde que fiquem as riquezas... – considera de
imediato Carcavel. – Além disso, o destino torce-se! Para isso conto também
convosco!... Ou será o vosso pescoço a ser torcido!...
Eles engolem em seco, enquanto o Príncipe em passo enérgico
se dirige à janela. Ali chegado, inclina-se para fora e, abrindo os braços em
exultação, grita para a criadagem:
– Ouviram? Quando
eu nasci, uma bruxa vaticinou que eu viveria até aos 100 anos! É o que pretendo
fazer!... Com a princesa a meu lado, para me servir e honrar!!
No pátio, onde se fez silêncio, Javardo zombeteia para um
subordinado:
– Nem que tenha que a amarrar à cama!... He!
He! – Depois, mais sério, medita: – Mas, após uns 40 anos de serviço e
honrarias, ela já não deverá valer grande coisa!...
Quase junto à janela de Carcavel, no piso de baixo, entrevê-se
a silhueta de Dária. Os seus olhos brilham no escuro.
[CONTINUA]
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segunda-feira, 2 de julho de 2012
Os Druidas de Valmenor (32)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Na casa de Apolinário, entretanto, Kli e Samara ultimam os
preparativos, arrumando algumas bagagens junto à mesa da cozinha.
– Sabes, Samara, quando vinha para cá pareceu-me vislumbrar
duas silhuetas a vigiar-me, lá da ponte para o templo.
– Ah, sim? – Ela detém-se, olhando para ele. – Talvez os
dois passarões do Príncipe que ficaram derrubados junto à Árvore Grande!...
– Não. Esses desapareceram antes de acabarmos o almoço. “Escafederam-se”, disse o Apuleio. – Kli
pega no seu bastão, encurtado. – Não devem voltar tão cedo. Ah, se apanho
aquele gordo!...
– Enfias-lhe o resto do teu cajado pelo cu acima? – diz ela
com um brilho de malícia no olhar.
– Samara! Isso não são modos para uma menina!...
– Ora, ora, ora!... Não sou uma menina, já tenho... 15
anos!...
Nesse momento, batem à porta vigorosamente. Com um
sobressalto, Kli e Samara entreolham-se.
– Quem será? – pergunta Kli.
Ela encolhe os ombros, como quem diz “sei lá!”, mas sugere: – Os teus dois espiões?
Ele sai da cozinha, atravessa silenciosamente a loja e,
chegado ao pé da porta, pergunta, franzindo o sobrolho:
– Quem é? Estamos fechados!
Lá fora, o visitante ri-se.
– Já montaste negócio, Kli? Vá, abre a porta, sou eu, o
Asdrúbal!
O estalajadeiro ouve o trinco correr. A porta entreabre-se e
surge Kli, um pouco perplexo:
– Asdrúbal? O que
queres? Nós pagamos-te o burro amanhã... – Só então, espantado, repara no
machado ao ombro do homem. – Para que é esse machado?!
– Para arrombar a porta, se não me deixares entrar! Vai
ficando frio aqui fora!...
O colosso entra. Enquanto atravessam a loja, Kli fala-lhe
dos vultos que vislumbrara na ponte.
– Não dei por ninguém – responde Asdrúbal, com o seu
característico arquear de sobrancelhas. – Talvez fosse o Apuleio e algum
outro...
Quando entram na cozinha, deparam com Samara no meio de
tralha diversa, imóvel com os braços cruzados.
– Então, Asdrúbal – zomba ela –, para que é esse machado tão
grande? Tornaste-te homem e decidiste vir connosco?
Ele, com o machado ao ombro, ignora a provocação.
– A minha imprudência não chega tão longe, Samara. Em
especial, e tu deves sabê-lo, pela minha família. Mas vocês precisam de proteção...
não só por causa dos Druidas, como também do Príncipe.
Nunca se sabe o que esperar desse canalha!... Sobretudo, depois da rixa de hoje
à tarde.
O homem desvia o olhar da rapariga para algum objeto à sua
esquerda.
– Assim... bem... pelo menos esta noite, aqui na aldeia, eu
posso protegê-los! Fico aqui.
Dito isto, senta-se num cadeirão, junto à braseira, com o
machado sobre os joelhos.
– Terão que passar-me por cima, para chegar até vós.
Lá fora, as duas silhuetas barbudas, atrás da árvore,
debatem:
– Entrou aquele brutamontes na casa. Quanto tempo irá lá
ficar?
– Ele levava um machado. Achas que os foi esquartejar?
– Não me parece, irmão – pondera o primeiro. – Não ouvimos
nenhum berro!...
Durante um instante, mantêm-se em silêncio. Um gato roça-se
na perna de um deles, assustando-o.
– Fora daqui, gato miserável! – ralha-lhe o homem entre
dentes, agitando a perna. Mas outros gatos aparecem.
– Estultos! – diz
uma voz, vinda dos lados da ponte.
Eles têm um sobressalto, clamando: – O quê? Quem está aí?
E nisto, virando-se, pisa cada um o rabo de um gato,
enquanto a voz prossegue: – Néscios!
Imbecis! Parlapatões insensatos!
O que se segue é um festival de miados, rosnados, arranhões
e gritos. Na casa de Apolinário, Kli, que já se tinha deitado, enrolado na sua
manta ao lado das bagagens, soergue-se:
– Que balbúrdia é esta?
– São os gatos à bulha, Kli – responde o estalajadeiro do
seu cadeirão. – Não te preocupes.
O cimbalino deita-se novamente. Mas não pode impedir-se de
pensar:
«Gatos não dão gritos!...»
[CONTINUA]
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domingo, 1 de julho de 2012
Os Druidas de Valmenor (31)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Ao findar o dia, Kli encontra-se novamente na estalagem, onde foi alugar um pónei para a viagem.
– Um pónei não tenho – diz Moutinho. – Mas posso arranjar-te
um burro.
– Serve.
Há secura na voz do cimbalino. Passado meio minuto, o
estalajadeiro comenta:
– Os homens do Príncipe foram bem sovados!
– Sim, é verdade. A ti, Asdrúbal, apesar de tudo, agradeço o
apoio que me deste hoje à tarde. Pode trazer-te alguns sarilhos!...
– Ora! – diz o homem, com ar de descaso. – Há tão poucas
ocasiões de uma pessoa se distrair, aqui!... Deves mais à Samara. Que coisa
espantosa, Kli, ninguém sabia que ela fosse uma arqueira!... E daquele
gabarito!
– As pessoas às vezes são mais do que parecem.
– E às vezes menos!...
Estou de acordo. Já fizeram todos os preparativos?
– Já.
– Hm! Portanto, estão mesmo decididos?
– Perfeitamente. Vamos amanhã.
Vendo que a decisão é definitiva, Asdrúbal Moutinho diz:
– Muito bem. O burro arranja-se para amanhã, bem cedo. Tenho
que ter uma conversa com ele!...
– Costumas conversar com os burros?
– De vez em quando... sobretudo quando vão para missões
perigosas. Os burros têm almas delicadas – esclarece. Depois, inclinando-se
para o cimbalino, adverte: – Cuidado, Kli! Ai de ti se os Druidas descobrem!...
Põem-te no caldeirão e comem-te aos bocados! Dizem que a Irmandade é implacável!
– Cuidado, Asdrúbal. Dizem que o Príncipe também o é –
retruca o cimbalino, com um ligeiro sorriso, e vira-se, dirigindo-se à porta.
Está já a atingi-la quando se detém ao ouvir a voz de Moutinho atrás de si:
– Kli! Antes de atravessares a Porta...
– Qual? Esta?! – admira-se ele.
O estalajadeiro ri-se. Depois, recuperando a gravidade, diz:
– Não, a outra: a Porta do Tormento Amarelo! Antes de a
atravessares, manda-me o burro para trás. – E, após uma pausa: – Não quero ficar
com um animal atormentado!
Escurece já quando duas silhuetas barbudas saem do templo em
direção à ponte. À porta aberta do edifício, Fulvo observa-os afastarem-se,
branco como a cal. Dizem eles:
– Vamos, irmão!
– Que tencionas fazer, esquartejá-lo?
Mas encolhem-se quando Kli sai da estalagem, encaminhando-se
para a casa do boticário, em frente. Vigiam-no enquanto rosnam, entre dentes:
– Ali! Lá está ele, irmão!
– É mesmo aquele?
– Não há dúvida! O estupor do sacerdote não nos enganou!
– Nem se atreveria, porra! Estava borrado de medo. Capávamos
o miserável, cozíamos-lhe os tomates!
– Dava um pitéu! He! He! Quanto àquele ali, vamos fritá-lo em azeite!
– Das orelhinhas arrebitadas faremos couratos...
– ... e das fortes perninhas dois presuntos fumados!...
Kli, tendo batido à porta, entra na casa.
– He! He! Terrível, irmão! Terrível!
– Vamos a isto! – dizem eles, avançando.
Param junto do grande carvalho, onde se dissimulam mais ou
menos. Comentam:
– Ele está lá com a miúda!
– Grande safado! Pederasta!
– Faremos uma espetada mista!
– Rreh! Rreh! Um chouricinho dele para uma carninha dela,
bem tenrinha!...
– Deixamo-los em vinha d’alhos de véspera, irmão. Com cebola,
pimento e molho de colorau, é de ficar inspirado!
Vigiam atentamente. Pouco depois, o último a falar
prepara-se para avançar:
– Vamos, irmão! Os alhos já estão descascados!
– Cuidado! – retém-no o primeiro. E eles tornam a
esconder-se atrás da árvore.
Acabam de avistar a sólida silhueta do estalajadeiro, que,
transportando ao ombro um grande machado de lâmina dupla, saiu do seu
estabelecimento e desce os degraus do alpendre.
[CONTINUA]
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sábado, 30 de junho de 2012
Os Druidas de Valmenor (30)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
– Estrelita Rúbia!... Tenho que ir
vistoriar os preparativos para a expedição!... – diz Javardo, arquejante, de
dentro da sua choupana.
– Que expedição, meu Fogoso Arminho? – responde ela,
arfando. – Só mais um pouco, vá!...
– Estrelita... a expedição!... Larga-me ou eu mordo-te!...
– Morde-me, meu
selvagem! MORDE-ME! MEU PÂNDEGO! MEU FALCÍPEDE!... Assim... AAAHH!…
Do lado de fora, no pátio, todos se divertem a ouvir aquilo.
Os homens amontoam coisas e limpam cavalos para a expedição.
No torreão, um dos bruxos põe a cabeça de fora para olhar
para o pátio, perguntando a si próprio:
– Mas que gritaria é aquela?!
– O que é que se passa lá em baixo? – pergunta uma voz do
lado de dentro. – Quem é que estão a morder?
– Não sei – responde o mago à janela, por onde saem fumos –,
mas toda a gente parece muito alegre. E já não é a primeira vez!...
Dito isto, volta para dentro, acrescentando:
– Ritos bárbaros, colega! Ritos bárbaros!...
No piso de baixo, Carcavel, no leito, chupa sofregamente um
mamilo da sua jovem amante. Comenta ela:
– Tendes um lugar-tenente mesmo estúpido e bruto, meu
Príncipe.
Ele não responde, entretido na sua tarefa. Ela cerra os
olhos, de prazer, e murmura:
– É bom!... – Mas, passado algum tempo, face ao afã de
Carcavel, recomenda: – Em todo o caso… convém poupar o meu seio, ardente Príncipe.
– Para quem, para o Javardo ou qualquer campónio piolhoso?!
– reage ele, duramente.
– Para o vosso filho. – diz ela e Carcavel de imediato se
endireita e fita-a nos olhos. – Eu estou grávida, meu Senhor.
Ele levanta-se, desamarrota a sua camisa de dormir e
pergunta-lhe, enquanto ela puxa suavemente os lençóis para se cobrir:
– Tens a certeza, Dária?
– Tenho. E estou feliz.
Carcavel faz um sorriso enviesado, dirige-se à janela,
observa o horizonte e diz, como se refletisse:
– Bom… Vou ter um pequeno bastardo!...
[CONTINUA]
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sexta-feira, 29 de junho de 2012
Os Druidas de Valmenor (29)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
– Foram tiros certeiros, Samara – diz o estalajadeiro com um
brilho de admiração no olhar. – Onde foi que aprendeste a atirar assim?
– Ora! Que mais há para uma rapariga fazer nesta terra?
– Tomar banho! Tomar banho! Tomar banho! – repete o pateta,
rapidamente e agitando a cabeça como se fosse um contador.
– Extraordinário! Soberbo! Magnífica lição! – exclama, por
sua vez, Lúcio, que chega ao pé deles, todo entusiasmado. – Os golpes hoje aqui
vibrados ficarão na memória dos deuses como dos mais viris da história deste
rincão!!
– Achas que sim?! – responde Asdrúbal Moutinho, arqueando as
sobrancelhas com ar de dúvida. – O Príncipe vai revidar, Lúcio. Isso é que me
preocupa.
– Mais uma razão para eu me ir embora! – diz Kli. – Não vos
quero causar mais problemas. Amanhã de manhã partirei para Valmenor.
– Partiremos! – corrige a rapariga,
franzindo as sobrancelhas.
“A decisão dos Heróis era irrevogável” – virá a escrever
Lúcio Simplex.
No hemiciclo defronte do templo, Fulvo, ainda atónito,
balbucia:
– Incrível!... A filha do Apolinário acertou uma seta no
rabo de um deles! E arrancou uma faca da mão de outro!!
Passado um bocado, alguém comenta:
– Filha!... Como se ela pudesse ser filha de cimbalinos!
– Se calhar, pode! Se calhar, é por isso que é maluca e se
põe a atirar setas!...
– Sim! Aquilo não é natural!
– Perdão! Há em todo este assunto algo que... – e a conversa
prossegue, reincidente.
– Eis ali o nosso amigo Fulvo! – diz Kli, olhando para o
hemiciclo. – Parece que já acabou a sua cerimónia religiosa!... É altura de ir
falar com ele!
Como se adivinhasse as intenções de Kli, o sacerdote
escapa-se para dentro do templo, trancando a porta. Lúcio
ri-se:
– Ha, Ha, Ha! Não tirarás nada daquele!...
– A verdade é que nem valeria a pena!... – acrescenta o
estalajadeiro. – Bom, vamos almoçar!
– E o que se faz destes dois falcípedes? – pergunta o
palerma, referindo-se ao gordo e ao companheiro que batera com a cabeça na
árvore, ambos inanimados.
– Esses paspalhões? Que fiquem aí!
– Falcípedes?! –
pergunta Kli, admirado.
– Não ligues, o Apuleio diz coisas sem sentido!... – replica
Samara.
– Falcípedes – recomeça o palerma a recitar –, exâmines,
autistas, esquizotímicos, pincéis, volfrâmio ou tungsténio... tudo isto são
palavras de significado impecável!
– Ele vai escrever outra vez?
– Nunca se sabe!... – pondera Lúcio. – Mas não, desta vez
Apuleio não parece disposto a escrever.
De facto, ele corre para a margem do rio.
– Tomar banho! – proclama, já afastado. E atira-se à água!
Kli e Lúcio caminham em direção à estalagem. Samara e
Asdrúbal vão já uns dez passos adiante.
– Porque é que ele, há bocado, se pôs a falar em tomar banho, referindo-se a Samara? –
pergunta o cimbalino, apontando-a com um gesto de cabeça.
Lúcio, sem interromper o passo, olha para o palerma, que faz
grande espavento dentro de água.
– Porque um dia viu a Samara nua, a tomar banho no rio. Era
muito cedo e ela cantava algo ao Sol, que nascia atrás daquelas colinas!... –
Aponta para os montes onde se ergue a fortaleza de Carcavel. – O Apuleio
reproduziu-me o canto mais tarde, mas eu já não me lembro. Em qualquer caso,
ele parece ter ficado muito impressionado com o episódio!...
– Eu também já vi a Samara nua a tomar banho no rio! – diz o
puto Aderbal que, como por milagre, surgiu repentinamente ao lado deles. – Não
era grande coisa!... – completa ele, com adolescente sabedoria.
[CONTINUA]
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quinta-feira, 28 de junho de 2012
Os Druidas de Valmenor (28)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Com aquele alvoroço, a porta do templo entreabre-se e a
cabeça de Fulvo surge timidamente.
– O que se passa? – perguntam lá de dentro.
Ouve-se o palerma gritar: – Toma! Idiota! Sabujo!
Ornitorrinco!
– O címbalo e o Asdrúbal estão em maus lençóis – diz o
sacerdote, com um esgar cínico na face.
O adversário de Kli tem-no à sua mercê. Exulta já e
prepara-se para dar o golpe de misericórdia quando... uma seta se lhe espeta no
rabo! O homem grita. E Kli avista, a alguma distância, Samara equipada com o
seu arco. Com ar orgulhoso, acaba de disparar.
No templo, Fulvo também viu aquilo e abre os olhos de
espanto.
– A filha do Apolinário acertou uma flecha no rabo de um
deles!! – exclama.
– Uma flecha?! –
responde Astolfo, cuja cabeça aparece também à porta. – No rabo de quem?!
– A filha do Apolinário?!
– admira-se alguém, lá dentro.
“Samara, jovem
arqueira, interveio a tempo, trespassando o glúteo do inimigo com uma pontaria
assombrosa”.
Kli, sem perder tempo, dá uma tremenda paulada no gordo, que
desfalece. Mas outro deles, o que levara a pedrada de Aderbal, já se recompôs o
suficiente para se atirar ao cimbalino pelas costas, brandindo uma faca.
Uma segunda seta corta o ar, “e a arqueira arrancou-lhe a
faca da mão!...”
– Como Guilherme Tell
com a maçã – diz o palerma, com um sorriso de orelha a orelha.
O estalajadeiro, num vigoroso golpe, aligeira o adversário
da sua espada. Foi a conta para este, já alarmado com o que se passava à sua
volta. Cai de joelhos, suplicando a Asdrúbal:
– Piedade, poderoso senhor!
– Põe-te a andar, miserável! – riposta Asdrúbal. O homem
vira-se logo, para fugir, e o estalajadeiro acerta-lhe um pontapé no traseiro,
dizendo: – Ou antes, a correr!...
E ele sai a correr, na peugada do da faca e do da seta no
rabo, que já atravessa a ponte.
– Viva! – grita,
eufórico, o palerma. – Servos de merda!
Apóstolos!
Tomado de pânico, ao ver os três homens aproximarem-se,
Fulvo fecha a porta do templo.
– Fulvo, assim não vemos nada! – reclama alguém lá de
dentro.
– Não há nada para ver!
– Triplos cabrões! Vão
pastar na pedra! – invectiva o palerma, agitando o punho em direcção aos
servos do Príncipe que fogem para as encostas.
– Ontem foi um... E hoje são três! – comenta um pastor, para
o colega, ao vê-los passar.
– Amanhã serão talvez cinco, ou nove!... – responde o outro,
apoiando o queixo sobre as mãos e estas sobre o topo do bordão. É sabido que
foi com a contagem de ovelhas que se desenvolveu o cálculo e a noção de número.
Quando os fugitivos já vão longe, a porta do templo
reabre-se e Fulvo espreita cá para fora.
– Então? – pergunta alguém lá de dentro.
Vendo que não há perigo, saem todos para o ar livre e
põem-se a observar os três esbirros do Príncipe que são agora perseguidos pelo
cão de um pastor.
– Canalhas! Ponham-se a léguas[1]!
– grita Astolfo.
– Morde-os, Valente! –
incita Lila, embora o cão, muito longe, não a possa ouvir.
Olham então para os lados da grande árvore, onde Kli, Samara
e Asdrúbal estão agora reunidos. Lúcio Simplex, Amílcar e Elissa, vindo
apressadamente da estalagem, dirigem-se ao trio.
[CONTINUA]
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quarta-feira, 27 de junho de 2012
Os Druidas de Valmenor (27)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor"
(c) 2012 Luís Diferr
O cimbalino, usando do maior comprimento do seu cajado,
acerta uma pancada no queixo de um deles e depois, com uma extraordinária
agilidade, salta por cima dos outros, um dos quais é imediatamente esmurrado
por Asdrúbal Moutinho. Kli aterra atrás do gordo, que sua e arfa, como da
primeira vez: “Hu! Hu!”. Não se livra
o homem de uma tacada no crânio, antes mesmo de ter tempo para se virar; “HU!”
– Ora, cá estamos nós outra vez! – diz-lhe Kli, enquanto ele
vê estrelas.
Mas já um companheiro investe sobre o cimbalino, erguendo a
espada e rugindo!
POC! Antes que possa
desferir o golpe, é atingido por uma pedrada na cabeça. É o puto Aderbal que
entra na liça!
– Aderbal, que estás aqui a fazer? – lança-lhe o pai.
O miúdo gira novamente a sua funda.
– A mãe mandou perguntar se contas com muita gente para o
almoço – diz ele, acertando na pança do gordo.
– Não – responde Asdrúbal, batendo com a cabeça de um servo
na árvore. – O habitual. A menos que
estes amigos pretendam ficar!...
Três dos “amigos”
estão por terra, um devido à pedrada de Aderbal e o outro por ter batido com a
cabeça no tronco. A este último o estalajadeiro pediu a espada emprestada.
Quanto ao gordo, aturdido, contorce-se com dores.
Mas eis que um quarto (anteriormente esmurrado pelo
estalajadeiro) se atira a este, enquanto ele recomenda ao filho: – Vá, põe-te a
andar!
A distração de Asdrúbal vale-lhe um golpe no braço esquerdo!
Kli, por sua vez, enfrenta o adversário a quem dera uma
paulada no queixo. O homem é forte e destemido e ataca-o com a espada em riste.
Do alpendre da estalagem, ao lado de Elissa e de Amílcar,
excitados, Lúcio Simplex observa a luta. Virá ele a escrever mais tarde:
“A liça foi terrível, com dois Heróis e um fundibulário
juvenil a desancarem a turba. Os golpes vibrados nesse dia ficarão na memória
dos deuses como dos mais viris da história deste rincão.”
Aderbal passa célere por Lúcio e pelos irmãos e grita
através da porta aberta:
– Mãe! O pai diz que não há novidade!
A mãe, lá de dentro,
responde:
– Ótimo. Espero que ele não se atrase!...
Quando o rapaz se prepara para descer as escadas e retornar
à liça, depara com uma rapariga alta e loura, que na rua acaba de chegar a
correr. É Ariska, uma das filhas do Eslavo. Ela detém-se ao vê-lo, mexe
nervosamente uma mão na outra e pergunta:
– O que se passa ali, Aderbal?
– Não vês, Ariska?! – responde ele, contrariado. – Estão à
porrada!
– Mas tu não vais lá, pois não?
– Não sejas parva! Achas que eu ia perder a festa?
Porém, para seu maior contratempo, Mirthô surge à porta,
avista a luta e repreende-o:
– Onde vais tu, meu espertinho? Não penses ir divertir-te
com o teu pai, ora essa! Tens que me ajudar a carregar os legumes da cave e a
preparar o almoço. A vida não é só brincadeira.
Resmungando, Aderbal volta para dentro. A mãe acompanha-o,
não sem antes cumprimentar a jovem adolescente:
– Olá, Ariska! – E, depois de um momento a observá-la,
completa: – Não devias ligar a este palerma! Queres cá almoçar?
– Não. Acho que não.
– Então, cumprimentos ao teu pai.
E, com isto, deixa-a ali especada. Sob o olhar de Lúcio,
ela, depois de olhar para a refrega, sai a correr em direção à sua casa, no
outro extremo da aldeia.
– Adeus, Ariska! – gritam-lhe Amílcar e Elissa.
Debaixo da árvore, Asdrúbal e Kli defrontam os seus
adversários. O oponente de Kli desvia-se e, com um violento golpe de espada,
corta-lhe um bocado do cajado.
– Malandro! O meu cajado de sorveira brava! – brada o
cimbalino. Apoia-se no pau para lhe dar com os pés, mas o gordo, no chão,
corta-lhe mais um bocado do mesmo... e ele cai!
O palerma dá pulos de alegria: – Viva! Palermas! Capachos!
[CONTINUA]
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terça-feira, 26 de junho de 2012
Poemas com sabor a afectos
Livro de Isabel R. Monteiro, edição de Edições Esgotadas
Ilustração de capa (c)
2012 Luís Diferr
[Photoshop sobre
desenho a lápis de grafite em papel de aguarela]
Decorreu hoje o lançamento do livro de Isabel R. Monteiro, “Poemas com Sabor a Sol, a Sal e A-mar”,
para o qual tive o prazer de produzir a ilustração da capa e de que transcrevo
o seguinte poema, belíssimo como tantos outros:
Porquê essa alegria
Que nasce das palavras
E que arremeto ao tempo
E a quem saboreia o riso?
Porquê vazá-la de mim fora
Quase sem pensar… Porquê?
Se a minha alma tanto ri ou chora
Que dê ao menos esse apetite
Que dê, aos olhos lassos
que andam sempre tristes
O que só a alma
Bem conhece e sabe
E acorda em mim
nem eu sei porquê…
(c)2012 Isabel R. Monteiro
Ver notícia AQUI.
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Os Druidas de Valmenor (26)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Kli vem a atravessar a ponte, dialogando com o palerma:
– Que mais sabes sobre os Druidas, Apuleio?
– Sei que são parvos! – responde ele. – São parvos, parvos,
parvos!...
Nesse instante, o cimbalino vê Samara e o estalajadeiro a
correr na sua direção.
– Kli! FOGE! –
grita ela.
Num instante se reencontram. O palerma parece aborrecido com
isso, resmungando e olhando para o outro lado: – Parva!
– Vêm aí cinco galfarros do Carcavel para te tratar da saúde
– diz Asdrúbal ao cimbalino.
– Ah, vai haver pancadaria! – rejubila agora Apuleio. – Bom,
bom, bom!
– Ora, ora!... Por isso aquela gente se refugiou no
templo!... – diz Kli, olhando para lá.
– O que vais fazer? – pergunta Asdrúbal. E aponta o
arvoredo, a uns cem metros da aldeia. – Se fugires, talvez consigas esconder-te
na floresta.
– Fugir?! Eu?! –
indigna-se Kli. – De cinco boçais?!
– Viva! – exclama Samara e atira-se ao pescoço de Kli,
dando-lhe um beijo. – Que valente!
– Vimos cinco, mas pode haver mais – avisa Moutinho.
– Posso contar com a tua ajuda? – pergunta-lhe Kli.
O estalajadeiro medita por um instante.
– Podes contar comigo! Podes contar comigo! – grita o
palerma, pondo-se aos pulos, excitado.
Quando os esbirros do Príncipe chegam ao local, encontram
apenas Kli, encostado à grande árvore, de frente para eles, e Apuleio.
– Ora, ora!... Que robusta companhia!... – ironiza o
cimbalino.
– Aí estás tu, címbalo! Vimos buscar-te, a mando do nosso
mestre – atira-lhe logo um dos homens, ferozmente.
– Mas antes apetece-nos dar-te uma surra.
– Nesse caso, terão que se haver também comigo – diz
Asdrúbal Moutinho, saindo de trás da árvore.
Nesse momento, Samara entra apressadamente pelo portão do
jardim de Apolinário, proveniente de um caminho à beira-rio.
E, junto à grande árvore, uma hesitação de temor toma conta
da tropa.
– Não te metas nisto, cartaginês! – rosna um deles. – O
Príncipe não iria gostar!
– De quem o nosso Príncipe gosta é da garina!... – cospe outro,
com volúpia nos olhos. – Onde é que ela está, hã?
– Onde vocês não lhe possam pôr as patas em cima, sabujos – replica
friamente Kli.
– Samara está nua, Samara está nua! – cantarola o palerma,
pondo-se a dançar.
– Cala-te, Apuleio! – ralha Moutinho.
– Sabujos?! – urra um dos homens,
inconformado. – Pela má sorte, vamos permitir que este címbalo de merda nos
chame sabujos?
– Claro que não! – gritam eles. – Mata! Esfola!
– Mas o que é um sabujo,
afinal? – pergunta o gordo, perplexo.
– Cão de montaria!
– esclarece o palerma. – Utiliza-se figurativamente no sentido de um indivíduo servil... bajulador...
adulador... capacho...
– Vês?! – urra o homem, arreganhando
os dentes. – É um insulto! Ele insultou-nos!
E com raiva na alma, puxando das espadas, todos os cinco se
atiram a Kli e ao estalajadeiro.
[CONTINUA]
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segunda-feira, 25 de junho de 2012
Os Druidas de Valmenor (25)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Quase ao mesmo tempo, Kli e Samara saem de casa dela, pela porta da loja, a única aliás. Admiram-se ao avistar os aldeões a correr pela ponte.
– O que deu àquela gente? – pergunta Samara.
– Sei lá! – responde Kli. Avançam os dois até à grande
árvore junto à ponte, de onde avistam os outros entrar de roldão no templo. –
Algum surto de fé repentina!...
Ela ri-se; depois, virando costas, diz:
– Podes averiguar, já que vais falar com o Fulvo.
– Fulvo não fala, resmunga!... – esclarece Kli, dirigindo-se
para a ponte.
Samara volta atrás, encaminhando-se para a estalagem de
Moutinho. Entretanto, de debaixo da ponte sai o palerma, que abre um sorriso de
orelha a orelha quando reconhece o cimbalino:
– Olá, olá, olá!
– Olá, Apuleio! – saúda-o Kli, detendo-se.
O palerma em três pulos sobe a margem, do lado da aldeia, e
entra na ponte com passo desengonçado. Diz ele, ainda todo sorridente:
– O gado passou por aqui e acordou-me! Grande trote!
Acompanhado por Apuleio, Kli prossegue o seu caminho. O
palerma apanha uma maçã que Lila tinha deixado cair, trinca-a, e pergunta ao
cimbalino:
– Onde vais?... Resmugar
com o Fulvo?
– Hm, hm! – murmura Kli em assentimento.
– O Fulvo não é guardão!...
O Fulvo não é guardão!... –
cantarola o outro. – Porque é que dás conversa àquela parva?
Pouco depois, a
“parva” vai a entrar no estabelecimento de Asdrúbal Moutinho quando
choca com este, que ia a sair.
– Oh! – assusta-se
ela.
– Olá Samara. Ainda bem que te vejo!
– Não vale a pena tentares demover-me, Asdrúbal – proclama
ela secamente. – Aliás, preciso de
algumas coisas para a minha expedição a Valmenor! Espero que não te recuses a
fornecer-mas.
– É claro que não – diz Mirhtô, do fundo da loja.
– Samara, parece que vem aí um batalhão do Príncipe! – afirma
o homem, segurando-a pelos ombros. – Onde está Kli?
– Foi falar com o Fulvo. Um batalhão, dizes tu?
– Digo eu, não. Disse o Maquito, do Balaio. Eu ia justamente
avisar o cimbalino... eles vêm com certeza atrás dele!
Por acaso, no instante em que Kli e o pateta chegam ao
templo, o sacerdote aparece, aflito e visivelmente com o fim de fechar a porta.
Mais aflito fica ao dar de cara com o cimbalino.
– Tu?! – exclama
ele. – Não podes entrar! Estamos a celebrar uma cerimónia religiosa!
Particular!
– Nesse caso, volto mais tarde. Quero falar contigo.
– O que poderei eu ter a falar com um címbalo? – pergunta,
com a porta entreaberta. Mas a curiosidade impõe-se: – Qual seria o assunto da
conversa?
Por duas vezes, denotando impaciência, Kli bate com o cajado
no chão. Fitando Fulvo nos olhos, diz:
– Os Druidas de Valmenor.
Um olhar esbugalhado estampa-se na cara de Fulvo.
– Não sei nada sobre eles! – exclama. – Nem quero saber!
Retirando-se, pressuroso, fecha a porta com estrépito.
– Oh, oh! Os Druidas chegaram quando a Terra ainda era nova!
– recita, contente, o pateta.
Samara e o estalajadeiro desceram a escada e vão em passo
apressado pela rua quando avistam o “batalhão”,
ao fundo à sua esquerda.
– Os esbirros do Príncipe! – diz Moutinho.
– Aquilo é um batalhão?!
– admira-se a rapariga. – São só cinco!
– Talvez haja mais! – diz Moutinho, com ar duvidoso. –
Apressemo-nos.
Entretanto os outros também os viram:
– Olhem! A miúda
do boticário! Com o cartaginês!
– Vão com ar apressado. Aquilo não é normal – pondera um
deles.
– Devem ir avisar o címbalo! Vamos! – exclama um terceiro; e
todos se põem a correr.
[CONTINUA]
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domingo, 24 de junho de 2012
Os Druidas de Valmenor (24)
Kli Van-Kli, "Os Druidas de
Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr
Um rapaz entra a correr na estalagem de Moutinho, avisando excitado:
– Asdrúbal! Vem aí um batalhão de gente do Príncipe!
– Um batalhão?! – admira-se o estalajadeiro. – Diabo! Devem
andar à procura de Kli!
– Se calhar vêm vingar-se do que aconteceu ontem ao
Esturjão! – lembra uma cliente, ansiosa.
– O Esturjão? – inquire
Moutinho. – É esse o nome dele? Não sabia que conhecias o homem, Lila!...
Lila embaraça-se, deixa cair umas maçãs que pusera numa
malga.
– O meu irmão já tinha falado nele! – diz ela, encarnada. –
Encontrava-o às vezes nas encostas!
– O que é que interessa onde é que o irmão dela o
encontrava?! – resmunga um velho bebedor de cerveja, agitando a caneca. – O que
interessa é que já há algum tempo que não tínhamos problemas com o Príncipe; e
agora vem aí um batalhão!... Certamente não com boas intenções!
– A culpa é do cimbalino! Foi ele que bateu no outro! –
opina um homem gordo, a suar.
– Ainda acabamos por pagar pelo címbalo!... – reclama um
quarto cliente, com algum rancor.
– O címbalo, Astolfo?...
Tens a boca virada para o insulto – diz o estalajadeiro com um sorriso irónico
na expressão grave. – Ainda ontem, se bem me lembro, não te furtaste a chamar
nomes ao Esturjão!...
– Chamou-lhe cabrão! –
diz o puto Aderbal. E o irmão confirma:
– Pois foi.
Astolfo tem ganas de bater nos miúdos, mas contém-se, à
vista do porte do pai. Entretanto, já toda a gente se vira para a porta...
– Que se lixe, tudo isso! – exclama o gordo. – O batalhão é
bem capaz de vir para aqui. E eu não quero cá estar quando eles chegarem!
E, numa balbúrdia, precipitam-se todos para a porta.
– Um momento! – ordena Moutinho, na sua voz
imperiosa, e todos se detêm. Acrescenta ele: – Livre-se alguém de denunciar o paradeiro do cimbalino aos homens do
Príncipe. Tratarei eu mesmo de fritá-lo em azeite.
Com a advertência no cérebro, os clientes saem do entreposto
e descem a escada num tumulto. Chegados à rua, contudo, param indecisos,
olhando para um lado e para o outro; da esquerda, onde ficam as suas casas,
virá “o batalhão”. E este, justamente, acaba de entrar na aldeia, passa à porta
da oficina do Eslavo, o ferrador, que interrompe o trabalho e os olha de
sobrolho louro carregado.
– Para onde vamos? – perguntam-se os clientes de Asdrúbal,
receosos.
– A minha casa é para ali – diz um deles, apontando para a
esquerda.
– Também a minha! Mas, por ali, ainda damos de cara com o
batalhão!
De facto, eles encontram-se perto da entrada oposta àquela
por onde chegam os homens do Príncipe, que é do lado da fortaleza, a leste.
– Para o templo! – sugere o gordo, a suar.
– Boa ideia!
– Pedimos ao Fulvo para fazer uma prece! – diz Lila, mais
ansiosa do que nunca.
Os fugitivos correm a refugiar-se no templo. Lila deixa cair
batatas e fruta. Quando encetam a travessia da pequena ponte, Astolfo reclama:
– Este Asdrúbal ainda nos vai trazer problemas!
– Cartaginês! – responde o velho, ágil nas pernas. – Os
Romanos já deram cabo dos da raça dele!
– Esperem por mim! – grita-lhes o gordo.
[CONTINUA]
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